sexta-feira, 26 de março de 2010

Um amigo

O liceu que Isabel agora frequentava era muito diferente.
 Depois de ter estado fechada em casa doente e de ter frequentado de seguida, um ano escolar no liceu feminino, onde a maioria das colegas tinham passado de ano estando mais adiantadas, Isabel sentiu que tinha crescido, estava mais segura. Já sabia estudar. As situações complicadas que antes a assustavam de morte, passou a enfrentá-las mesmo que a tremer de medo.

No novo liceu, com novos colegas e mais senhora de si, sentia-se mais forte. Tinha passado o tempo dos almoços ridículos e diminutos que a faziam passar fome, sem ela, feito parva, nunca reclamar em casa. Agora ou almoçava na cantina, ou num pequeno, muito humilde e familiar, onde muitos jovens do liceu almoçavam, ou então quando o horário, almoçava em casa.

Nesta altura preocupava-se em fazer uma alimentação correcta, pois como tinha engordado durante o tratamento da doença pulmonar, queria ficar elegante como todas as moças que via no liceu que pareciam estrelas de cinema, pelo menos aos seus olhos. Assim estavam postos de lado, os pasteis de carne, as bolas de berlim, os mil folhas e os jesuítas, que sempre adorou, assim como tudo, que a pudesse engordar.

Estudava como sabia, sozinha, sem nunca procurar algum apoio em casa. Com as colegas por vezes tirava duvidas, mas só isso, e gradualmente ia superando todos os obstaculos.

Em casa procurava não apresentar problemas e se por vezes nas aulas alguma coisa não corria bem, tentava colmatar essa falha logo que lhe fosse possível. Assumia a resolução de todos os problemas. Pedia em casa absolutamente o indispensável, pois a maioria das vezes nunca tinha consentimento para participar em coisa nenhuma. Sempre que podia e que uma ou outra actividade ocorria durante o período das aulas, participava e nem comentava nada em casa. Em várias festas escolares em que participou esteve sozinha, mas ou isso ou nada, era o que imaginava.

Fez todos os exames que foi necessário fazer, sem qualquer apoio. Claro que não conseguiu médias excelentes, mas o suficiente para não se envergonhar. Estudava, fazia os exames e quando a nota saía comunicava em casa o resultado. A luta maior teve-a com o inglês, por vergonha e também por palermice, mas o exame final, feito sem ajuda, concluí-o com 13 valores o que a deixou feliz. Enquanto isso, António acompanhava o João para todo o lado,  durante o ano lectivo, á entrada e saída dos exames. Isabel em relação a isto sentia-se livre. Estava a viver a sua vida estudantil sozinha desde pequena, á excepção das explicações de admissão ao liceu. Detestava que o pai andasse atrás dela o tempo todo. Mas como era rapariga, a preocupação de tirar um curso era muito menor. Ao homem competia o governo da casa, era sempre o que o pai de Isabel dizia, mas para ela mais tarde não reclamar deixava-a andar, enquanto não repetisse de ano. Era assim que pensava e dizia:
-"estudas enquanto não reprovares, que não quero  que me acuses de dar ao teu irmão e não a ti"

Muitas vezes sonhava fazer os passeios, excursões ou visitas de estudo que eram propostas nas aulas pelos professores, mas tentava sempre alegar que não era fácil ir, por viver fora da cidade, ou porque era muito caro, ou dando outra desculpa conforme a situação. Era impensável imaginar que o pai a deixaria ir de autocarro fosse para onde fosse, com rapazes á mistura, quanto mais, de um dia para outro, como acontecia nos passeios de final de ano lectivo.
Ficou-lhe para sempre na memoria, a excursão ás grutas de Santo António, que por invasão tempestuosa da avó na cozinha por causa do uso de calças, Isabel tinha conseguido participar.

Não arriscava pedir para sair, porque isso resultava sempre em discussão familiar o que a incomodava muito, tirando-lhe o sono e a atenção para as aulas no dia seguinte. Além disso tinha o seu orgulho e não gostava de implorar. Estava cansada disso.

Dos amigos que tinha, alguns eram especiais. Um deles, que até tinha namorada conversava muito com Isabel. Várias  vezes já a tinha convidado para ir almoçar em sua casa. Um dia ela aceitou.

Ele vivia na cidade, num andar. Em casa o almoço foi preparado pela avó do amigo. Alheiras com batata frita e arroz branco, e uma salada de tomate. Isabel nunca tinha comido alheiras nem sabia o que era isso. Comeu e gostou bastante. A senhora, tratou-a com muita delicadeza e não a deixou sair sem que comesse uma banana. Isabel gostou muito deste almoço, por tudo o que ele envolveu. A intimidade e carinho que sentiu naquela casa fez-lhe sentir que era um bocadinho importante para alguém, e isso era muito bom e fazia-a sentir gente.

Pelo caminho de regresso ao liceu, Isabel perguntou ao amigo pelos pais e irmãos. Irmãos não tinha, e os pais estavam divorciados. Como os pais não se entendiam, porque o pai era namoradeiro apesar de casado, e a mãe não aceitava isso, depois de muitas discussões, o pai saiu de casa. A mãe trabalhava numa loja de produtos de decoração e fazia tudo para que não faltasse nada ao filho, mas sofria pelas traições do marido.

Aquele amigo sofria porque gostava muito do pai e pelas suas atitudes e comportamento em relação á mãe, tinha que estar separado dele. Ele entendia a mãe, mas faltava-lhe o pai. Por mais camisolas e outras roupas, discos, mesadas, que a mãe e o pai lhe dessem, ele não era feliz. O que ele queria era vê-los juntos. Confidenciava tudo isso a Isabel, que por esse motivo, nesses dias, se sentia muito importante e feliz. Alguém confiava, acreditava e precisava dela. Por momentos Isabel, não só entendia muito bem aquele amigo, como  agradecia as confidencias, verificando que não era só na sua casa que existiam problemas.

Com esse amigo, ela passeava na baixa da cidade percorrendo lojas e mais lojas, fazendo com ele compras para as quais muitas vezes ele lhe pedia opinião. A namorada dele chegou a ter ciúmes daquela amizade, mas sem motivo.Para Isabel era para sempre um grande amigo, e só.

Isabel não estava mais sozinha mas faltavam-lhe os convívios e as festas com jovens da sua idade. Os passeios as gargalhadas, um pouco de diversão. Cada vez se sentia mais prisioneira da rigidez com que era educada. Não ia guardar para o seu futuro histórias de coisa nenhuma. Só a frustração de nunca se poder divertir com amigos.

Todos os anos no liceu havia um baile finalistas. Isabel nunca pediu para ir, mas vivia ansiosa para saber se quando chegasse a altura do seu baile o pai iria dizer NÃO. Depois se viria.

Entretanto Isabel aproveitava cada momento no liceu, especialmente quando atentamente ouvia os relatos das colegas no regresso de um qualquer passeio ou visita de estudo. Em sonhos imaginava que devia ser muito divertido todos juntos…, mas eram só sonhos.

Aquela amizade de Isabel continuou para sempre. Um dia cada um seguiu o seu caminho, mas o que viveram e aprenderam juntos ficou, o valor da amizade. Isabel tinha um amigo que confiava nela e em quem ela confiava.

Pela quantidade de discos que adquiriu na juventude o primeiro trabalho do amigo de Isabel, foi na rádio. E por lá ficou. Casou com a namorada e teve filhos. E desgostos também. Mas esta seria uma outra longa história.

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