quinta-feira, 4 de março de 2010

O liceu

Depois de ter concluído o ensino primário e de ter feito com êxito os exames de aptidão ao ensino secundário o pai de Isabel determinou que ela iria estudar para o liceu feminino. Enquanto tivesse aproveitamento escolar aí se manteria.
Sendo na cidade, o liceu ficava distante da estação de comboios , pelo que Isabel ainda que teria de percorrer algum caminho de autocarro para lá chegar. Para Isabel habituada só à aldeia e a sair de casa sempre acompanhada pela mãe ou pelo pai e mãe, este percurso que ela tinha que passar a fazer diariamente, parecia-lhe além arriscado muito complicado.
Isabel como nunca saía para lado nenhum sozinha tinha medo de tudo . Muitos transportes, horários a cumprir , levantar muito cedo e chegar muito tarde a casa , muita gente á sua volta , uma escola nova com imensas salas e muitas professoras. Tudo era novo e diferente para ela .
Ter de ir de comboio todos os dias e passar os dias sozinha ia ser muito difícil. Ela não disse a ninguém mas tinha medo.
O João já fazia este percurso havia algum tempo e não se queixava , ela também iria conseguir. Ao principio passava sempre pelo emprego do pai, mas um dia ele disse-lhe:
”que vens aqui fazer Isabel, não voltas a passar por aqui , ouviste, do comboio vais para o liceu, entendido”.
Isabel não voltou a passar por lá, sentindo-se assim ainda mais sozinha.
E lá se foi habituando ao percurso, um pouco por sua conta, pois que da sua aldeia mais nenhuma menina tinha ido para o liceu. Com o tempo aprendeu a conviver , com meninas que viajavam também de comboio vindas de outras aldeias.
Pelo horário que tinha, quase todos os dias Isabel levava consigo o almoço do dia. Comer na cantina era muito caro, só para famílias com muitas posses, era o que pensava Isabel que adorava a cantina do liceu, e o cheiro a comida boa que de lá saía. Com as mesas muito bem postas com toalhas brancas, parecia que todos os dias eram de festa. Isabel adorava sobretudo os dias, quando ao passar sentia o cheiro “daquele “ arroz servido com pasteis de carne. Não podia evitar sentir inveja daquelas meninas que sentadas á mesa se deliciavam com esse prato. Crescia-lha sempre água na boca.
Conforme a hora a que tinha de sair de casa para cumprir o horário no liceu, a mãe colocava-lhe num saco que ela detestava, azul pardo com o focinho dum burro peludo numa das faces, um tacho minúsculo com algumas batatas fritas e um ovo estrelado, um pão sem nada ,outro com marmelada e uma maça ou pêra.
De facto a Isabel nos dias em que tinha aulas todo o dia rapidamente comia a sua merenda e passava o resto do dia com fome.
Pensou então em fazer o percurso do comboio até ao liceu a pé, e quando o tempo o permitia fazer também o inverso, e assim arranjar algum dinheiro para comprar alguma coisa numa pequena loja da cantina, ou uns tremoços ou pevides numa senhora que todos os dias não muito longe do liceu fazia a sua venda.
Cada bilhete custava sete tostões, e um pastel de carne custava dez tostões, pelo que para Isabel conseguir comprar alguma coisa tinha que fazer muitas caminhadas. Normalmente essas caminhadas davam-lhe ainda mais fome e não poucas vezes desejou estar perto de casa para comer qualquer coisa, mesmo que fosse aquela massa guisada com bacalhau que odiava .
Sempre que tocava a campainha para o recreio ela corria como louca para a cantina dos bolos mas quando chegava a fila já estava enorme. Dificilmente conseguia comprar o bolo que queria. Ou tocava para a entrada antes de ter chegado a vez dela, ou já não havia o bolo que ela queria quando era atendida, ou o que era muito , levava uma repreensão por ir a correr no corredor e nem chegava a ir á casinha da venda dos bolos . Nenhuma das situações era cómoda para Isabel, que começava a sentir-se um patinho feio rejeitado por toda a gente.
Tinha um medo horrível da senhora a quem chamavam “Maria dos craveiros”, e da hipótese de ser chamada á senhora reitora, nem se fala. Além destas duas pessoas, quem mais a assustava no liceu era a malvada da chefe de turma, que passava a vida, enquanto a professora de cada disciplina não chegava á aula, a escrever no quadro o numero das meninas que faziam alguma coisa” mal feita”, tipo falar mais alto, rir de algo, levantar da cadeira, falar para a colega do lado. Era má, chata ,feia e repetente. Definitivamente Isabel nunca iria gostar dela nem de nenhuma chefe de turma. Parecia que sabiam tudo. Era umas manientas e Isabel não gostava delas.
O liceu era enorme, várias entradas e saídas, umas proibidas outras não, tinha imensas salas em vários andares, conforme o ano de escolaridade, muitas portas todas numeradas, e muitas vezes as aulas não eram sempre no mesma sala. Ao principio tudo aquilo era muito estranho para Isabel, que na sua aldeia sempre tivera aulas na mesma sala e com a mesma professora.
Recordava-se que nos primeiros dias que chegou ao liceu, quando olhou para as pautas e viu aqueles números e letras todas e não conseguiu atinar com nada daquilo, parecia-lhe tudo demasiado esquisito. Por acaso pediu ajuda àquela miúda que agora era sua chefe de turma, e ela não se tinha mostrado disponível,
“hem, mais logo agora não posso”. Na altura sentiu-se triste, mais tarde Isabel passou a não gostar nada dela.
Empurrão daqui e dacolá, com a ajuda e explicações de uma outra menina mais velha que viajava também de comboio, depressa percebeu e conseguiu tirar o seu horário para um papel. Daí a algum tempo já conhecia muito bem todo o liceu, por dentro e por fora, os seus recreios , os jardins, o ginásio , os locais proibidos.
À noite quando chegava a casa ia cansada. Muitas vezes a fome que tinha sentido durante o dia já tinha passado, só queria descansar e que em casa os pais não discutissem, o que continuava a acontecer regularmente.
Todos os dias aprendia coisas novas. Em casa nunca pedia ajuda, nem ninguém lhe perguntava nada.
Isabel tinha muitas coisas que não percebia e outras que a preocupavam. Não gostava de ter que estudar sempre nos livros já usados do João, que muitas vezes o pai mandava encadernar e que por isso ficavam tão duros que nem os conseguia abrir bem . Não queria ir para a costura por isso não podia repetir de ano, já sabia costurar alguma coisa mas não queria ser costureira como o pai dizia.
Mas andava cansada, dormia mal e pouco.
De noite ouvia muitas vezes a mãe chorar e isso tirava-lhe o sono, além de que tinha dias em que se levantava para o comboio das sete da manhã, o que lhe encurtava as noites se sono.
Tinha muitos pesadelos. Acordava muitas vezes aflita e a chorar.
Comia mal.
Tudo indiciava que algo não estava bem com Isabel. Ela estava a adaptar-se á sua nova vida mas o seu aproveitamento não era famoso.
Tinha medo de muita coisa e detestava a sua figura. O seu casaco azul direito, a sua saca de merenda, a pasta modelo de homem que o pai a obrigava a usar, para não falar dos sapatos enormes e feios que tinham que servir para o Verão e para o Inverno, e lhe deixavam os pés gelados quando o frio apertava. Se Isabel pudesse trazia os pés sempre escondidos. Detestava os sapatos e as cenas que passava com os pais quando lhos compravam.
Definitivamente esse primeiro ano no liceu trouxe para Isabel um monte de descobertas, de coisas novas , umas boas outras más.
A meio das férias de Verão, Isabel depois de um amigdalite , ficou com uma febre que nunca mais passou. Estava doente .
Isabel estava com uma doença pulmonar!

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