sexta-feira, 12 de março de 2010

As calças novas

Chegada a hora de jantar, António perguntou pelo João e ele não estava.
Graça desculpou-o como pôde, dizendo que ele tinha ido a casa da avó Teresa, que não devia tardar.

Mas como o João não chegasse, António resolveu que deviam começar a refeição por estar na hora. Quando o João chegasse a casa conversaria com ele. António queria sempre que os filhos estivessem devidamente limpos e arrumados para a hora das refeições e sempre á hora por ele estipulada. Isabel sentou-se á mesa ao lado da mãe, virada para a parede, daquela cozinha escura, sem vontade nenhuma de comer. Perdera todo o apetite. Estava aflita pela demora do irmão. Já sabia que quando ele chegasse ia haver problema.

O pai ralhava muito com o João quando ele fazia algo que não era do seu agrado, e quando lhe batia, tirava o cinto das calças e batia-lhe até se cansar. O cinto chiava no ar tantas vezes quantas as que caía no corpo do João, enquanto este com as mãos tentava esquivar-se á violência das cinturadas. Normalmente Isabel que não gostava de ver o irmão apanhar, fartava-se de andar de volta do pai a pedir-lhe por tudo para não bater mais no irmão, enquanto via o pai vermelho de raiva a arfar enquanto lhe batia. Isabel sabia que o irmão era teimoso e muitas vezes não fazia o que a mãe mandava. Obedecia mais ao pai por medo, mas como era seu irmão entendia que todos os rapazes eram um pouco assim.

Aliás o tio Nélito também era assim reguila, só que o avô Orlando deixava-o andar. Podia passar um dia inteiro em cima da laranjeira a tocar bateria (panelas e testos) que ninguém lhe dizia nada e ainda lhe iam lá levar comida.

Isabel gostava muito do irmão e não gostava de o ver levar pancada do pai. O João costumava trilhar a língua e virá-la ao contrário, em sinal de raiva, e fazia força para não chorar, mas depois quando o pai saía , atirava-se aos pontapés ás portas com uma raiva tão grande que parecia querer deitar a casa a baixo.

Graça costumava dizer ao João quando ele se portava mal ou lhe desobedecia, que fazia queixa ao pai mal ele chegasse :

-“faço queixa ao teu pai quando ele chegar, negra seja eu como o fumeiro”, era sempre assim que a mãe dizia ,mas nem nunca fazia queixa ao pai, nem nunca ficou negra da cor do fumeiro.

Estávamos a começar a jantar. O pai sorvia a sopa, assobiando de cada colherada que levava á boca. Estava furioso e mal o João entrou na cozinha, levantou-se tirou rapidamente o cinto das calças e sem perguntar ao João por coisa nenhuma, começou a dar-lhe cinturadas, a dizer-lhe constantemente que ele sabia muito bem a hora do jantar. A mãe pedia-lhe para ele parar, mas António mandava-a calar caso contrário levava também.

De um momento para o outro estava instalada a guerra na cozinha de Isabel, que como era costume implorava ao pai:” pronto já chega , não bata mais no meu irmão”, até que a mãe conseguiu puxar o João, das mãos do pai e levá-lo para o quarto.

Entre soluços o João contou á mãe e á irmã que tinha encontrado um gato e que tinha andado atrás dele pelos quintais das vizinhas da avó Teresa. Conseguiu que ele lá ficasse e a avó velha (como ele e Isabel carinhosamente tratavam a bisavó Júlia), ia dar-lhe sempre comida. Com tudo isso tinha perdido a noção das horas. Mas não aconteceu mais nada. Foi tudo sem querer. Não estava na rua a jogar nem á bola, ao pião, ao botão ou á carica, estava só em casa da avó Teresa. João falava aos soluços cheio de mágoa e com certeza cheio de dores no corpo de tanto ter apanhado. Isabel olhava o irmão com ternura, que a chorar lhe dizia:

-“hás-de ir vê-lo lá abaixo, é muito lindo” e não parava de chorar.

O pai chamou da cozinha, a mãe e Isabel para a mesa.
Nada estava a correr bem naquele dia. À tarde quando chegou do liceu, Isabel tinha dito á mãe que ia haver uma excursão do liceu, a umas grutas descobertas perto de Fátima, e que tinha uma folha para o pai assinar a confirmar ou não se ela podia ir fazer essa visita. Era uma visita de estudo sem custos e a partida e chegada da camioneta era da beira do rio na cidade, e a senhora directora de turma era de opinião que as meninas deviam ir todas, motivo pelo qual quem não levasse a folha assinada, teria falta. Isabel estava metida numa enrascada, não sabia como falar ao pai naquele assunto.

Com todos aqueles acontecimentos e a forma brusca como o pai antes do jantar começou a implicar por causa da ausência do João, não tinha achado oportuno falar nisso. Agora estava tudo muito pior. O João chorava no quarto e na cozinha estava tudo amuado e de mau humor.

Claro que Isabel nem em sonhos imaginava falar ao pai o como tinha falado á mãe. Á tarde além de comentar da excursão á mãe, tinha-lhe perguntado se ela sabia fazer calças. Isabel adorava ter umas calças. No liceu já algumas meninas tinham, poucas é verdade, mas umas calças era tudo o que Isabel podia ambicionar, mesmo feitas pela mãe. Afinal no Verão a mãe fazia-lhe calções e a ela parecia-lhe que devia ser mais ou menos a mesma coisa. Porém a mãe disse que não sabia ,que não era a mesma coisa, e que o melhor era Isabel tirar essa ideia da cabeça pois não sabia se o pai alguma vez a ir deixar andar vestida de homem.

Para Isabel isso era um sonho. Ir com a mãe comprar umas calças para levar na excursão. E o dinheiro? E a vontade do pai? E a coragem para lhe pedir?

Mas depressa voltou á realidade. Estava a jantar na sua cozinha escura, ao fundo do corredor de cimento vermelho escuro, e o irmão chorava no quarto por ter levado com o cinto, sem ter havido razão para tal, era o que pensava Isabel.

Á mesa o pai estava zangado, a mãe amuada e triste pois não gostava que António batesse assim no filho e além disso também tinha sido ameaçada de levar com o cinto por proteger o filho. Isabel aflita e agitada com aquilo tudo, tinha mais era que esperar que o pai lhe assinasse a folha sem muitas perguntas. Afinal ela já estava habituada a não ir a lado nenhum, também não iria estranhar. Naquele momento ela queria paz.

No silêncio do ambiente amuado, sentiu-se um achinelar no corredor, que depressa chegou á cozinha. Não podia ser grande coisa. Isabel conhecia aquele caminhar...

Raramente a avó Olinda entrava assim porta dentro, sem se fazer avisar,  muito menos á hora da refeição. Estava com cara de poucos amigos.

Isabel encolheu-se quanto pode no mocho e se pudesse tinha fugido dali para fora, ou mesmo esconder-se debaixo da mesa . Todos olharam para a avó. Estava lívida, com ar zangado e decidido. Com certeza que o que tinha para dizer seria muito grave. Mexia com as mãos ora no avental ora no lenço da cabeça como que a preparar o discurso. Será que o cinto ainda iria sobrar para ela(pensava Isabel).

Não se lembrava de ter feito nada mal, mas com a avó nunca se saberia.

Isabel meteu as mãos no regaço e baixou os olhos. O dia já ia tão longo que estava cansada daquelas coisas. Logo se veria o que tinha a avó para dizer.

-“fale minha mãe “, disse António. E a avó disse:

-“venho aqui porque sei que já andam por aí meninas que nem sei se o são, vestidas com calças como os homens, pois bem as vejo lá pela cidade, e por isso digo e repito que não permito que neta minha vista essas coisas. É uma acção feia, uma desonra, uma pouca vergonha, essa menina aí(disse apontando para Isabel) que nem pense em vestir calças, ouviste António “

Isabel encolheu-se ainda mais no mocho. A avó parece que a adivinhou os seus desejos, ou então tinha escutado, a sua conversa com a mãe á tarde.

O pai virou-se para a avó Olinda e respondeu de imediato:
- “olhe minha mãe, nosso senhor Jesus Cristo, a quem a senhora tanto reza também andou no mundo vestido de saias, e não era nenhuma mulher, e em minha casa quem manda sou eu. Se era só isso que a senhora tinha a dizer, pode-se retirar. Eu decidirei o que a minha filha deve ou não vestir.”

Dentro do coração de Isabel nasceu uma luz de esperança. Nunca ouvira o pai falar assim para a avó. Contrariá-la era coisa que nunca fazia. Estava admirada. A avó saiu mais furiosa do que entrou.

Ao vê-la sair desta forma Graça sorriu para dentro, com malandrice. Quando queria, António sabia dizer o que era devido. Que tinha a sogra que votar opinião na roupa que a filha devia ou não vestir?

Isabel aproveitou a embalagem pela saída brusca da avó da cozinha, furiosa com a resposta do pai, sem ter levado a dela avante, e de uma aviada só falou-lhe da excursão e das calças. Pronto, estava dito e pedido.

Isabel nunca percebeu muito bem porquê, mas naquele dia o pai respondeu-lhe que sim senhora, que ela ia ver as estalactites e as estalagmites, e que ele próprio a iria levar e buscar no seu carro á beira do rio. Quanto ás calças recomendou á Graça que fosse á cidade com Isabel, ver umas que não fossem muito caras e nada justas.

Também ele achava que a filha iria mais protegida ver as grutas se fosse com umas calças a tapar as pernas.

Isabel estava admirada, confusa, mas feliz.
Não fora a pancada que o pai tinha dado ao João injustamente, sem sequer o escutar, (pois ele só se tinha atrasado um bocadito), e a avó ter entrado nessa altura armada em mandona, e Isabel não  teria tido opurtunidade de ganhar aqueles presentes. Furioso que estava, António impôs a sua autoridade perante todos, afirmando o seu poder de chefia.
O importante é que Isabel ia á excursão, de calças.

O João entretanto adormecera. Coitadito, Isabel queria muito bem ao seu irmão e não gostava nunca que o pai lhe batesse. Quando se deitou ela estava confusa e tristemente contente.

Não deixava de pensar nos olhos tristes do irmão magoado, cheios de lágrimas a dizer-lhe que o gato era lindo.
-”Amanhã vai lá abaixo vê-lo, é muito lindo”
No dia seguinte logo que pudesse ia vê-lo …

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