domingo, 28 de fevereiro de 2010

O sarilho

As aventuras de Isabel não acabavam, sem perceber porque por vezes lhe sucedia algum sarilho, e um dia foi mesmo um valente sarilho o que lhe aconteceu.


A chantagem com ela na escola continuava: “Se fizeres isto, podes brincar connosco… se não fizeres aquilo é porque és medricas, e dizemos à senhora professora que empurraste aquela… se não fizeres isto ou aquilo...”

Isabel era um pau-mandado, ou fazia o que os outros queriam ou ninguém brincava com ela. Por vezes tinha raiva de si mesmo. Que teria ela para ser assim tratada... ela que só queria paz e sossego, vivia constantemente em sobressalto, como se não bastassem as guerras em casa, também tinha a escola a fazê-la sentir-se sempre assustada.

À hora do recreio, a meio da manhã, um grupo de colegas convenceu-a a sentar-se na manivela que punha a girar a grande roda do poço. Isabel não tinha onde se segurar. Tremia das pernas. A roda girava, e ela sentada na pega não tinha onde se segurar. Pensou que ia morrer.

Um grupo de miúdas foi chamar a professora:

- “A Isabel está lá no alto sentada na manivela do poço, e vai cair.”

A professora apareceu à porta, e rapidamente o grupo que mantinha Isabel no alto deu à roda de forma que ela descesse. Ninguém conseguiria explicar porque não caiu Isabel daquela altura. A professora estava lívida e Isabel tremia, da mesma cor da professora. Começou a chorar.

Todas as meninas envolvidas na cena foram para a sala. Quem fez, porque tinha feito, mas por mais perguntas que a professora fizesse não encontrava respostas. Tinha-se instalado um silêncio comprometedor.

A professora ordenou que todas as meninas esticassem as mãos para levarem reguadas. Isabel, que chorava e tremia, esticou as suas mãos. Levou cinco reguadas em cada mão, e chorou ainda com mais afinco. Nunca ninguém a entendia. Ela não queria ter-se sentado ali, foi obrigada. Sentiu-se indignada com tudo. Não conseguia entender o que é que as pessoas tinham contra ela. Foi a primeira e a última vez que levou reguadas, mas doeram-lhe para sempre.

Em casa resolveu não dizer nada. A mãe notou-a triste mas como ela não respondeu, não deu importância ao caso. Cada dia Isabel se isolava mais, cada dia sentia mais medo das pessoas. Medo, era medo o que tinha. Vivia revoltada.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

A comunhão e os caracois

Como acontecia em famílias cristãs praticantes, Isabel andou na catequese.

Todos os domingos, depois da Missa, sentada num banco corrido da igreja, Isabel  tentava aprender as orações que a catequista ensinava ao grupo de meninas que nesse ano iam fazer a comunhão solene.

A primeira comunhão já estava feita.

Depois de ter decorado algumas orações primárias, e de ter aprendido que matar, roubar, ter maus pensamentos, dizer palavras feias, faltar à missa e mais uma série de coisas eram pecado, aprendeu como devia colocar a língua para receber a sagrada hóstia, e foi assim que fez a primeira comunhão.

Também aprendeu que tinha que dizer os seus pecados ao senhor padre, o que lhe causava um certo mau estar. Que pecados teria ela para dizer?

Aquele homem vestido de preto da cabeça aos pés representava Deus na terra, e isso assustava-a. Sentia que ele conseguia ler tudo o que ia dentro dela, como se ela fosse transparente.

Na altura da confissão, teria de inventar alguns pecados, sempre os mesmos, porque não sabia o que dizer. Isabel tinha a certeza de que se ela fosse pecadora, em casa dela todos eram pecadores. A mãe e o pai, raras vezes iam à missa e andavam sempre discutir, e não se lembrava de os ver ir à confissão. A avó Olinda andava sempre na missa e a confessar-se, mas isso também não admirava porque parecia andar sempre de mal com tudo.

Para a comunhão solene, tinha que saber muito mais coisas e orações muito complicadas. O Credo, a Confissão e  o Acto de Contrição, as Bem-Aventuranças,  a Salvé-Rainha e um conjunto de outras orações, que bem sabidas fariam dela uma menina preparada.

Usaria um vestido comprido e um véu na cabeça, tudo alugado como era usual nessa altura, um terço e um missal nas mãos que iriam cobertas com umas luvas de renda, e um saquinho com um lenço bordado, tudo branco imaculado.

A mãe de Isabel pensou que para esta cerimónia o melhor era melhorar o penteado de Isabel. Assim, em vez de cortar o cabelo no barbeiro do canto, levou-a a um cabeleireiro à cidade para fazer uns caracóis, técnica que se chamava de permanente com ferros.

Chegada ao cabelereiro, a mãe de Isabel disse às senhoras que queria a cabeça da menina com caracóis. Começaram de volta da cabeça de Isabel. Mexe aqui, corta dacolá, arrepela daqui, puxa dacolá. Líquidos com um cheiro esquisito, e uns ferros pesados começaram a pesar-lhe na cabeça. Depressa começou a sentir que queria sair dali depressa. Mal conseguia segurar a cabeça com o peso dos ferros. A certa altura, com a cabeça cheia daquelas pinças pesadas, quentes e a cheirar a amoníaco, a mãe disse:
- “Ficas aí, que vou à rua tratar de um assunto e já venho.”


Isabel ficou sozinha na sala. Ficou ali tanto tempo que parecia que todos se tinham esquecido dela. Passou a hora de almoço, e ela já não sabia se sentia fome ou medo de estar sozinha e esquecida. Doía-lhe a barriga de fome. A cabeça também lhe doía e o medo começou a tomar conta dela.

Chamava pelas senhoras e nada. A mãe também não aparecia e ela mais do que nunca desejou estar na barbearia do seu canto, a cortar a marrafa e a aparar o  cabelo a direito. Tinha a cara a ferver, vermelha, parecia que a estavam a cozer.

Queria fugir dali, e quanto mais depressa melhor.
Quando apareceram as senhoras, a fome já tinha passado. Estava vermelha como um pimento, e aflita com medo da  mãe não aparecer mais.
Porque será que a mãe a tinha deixado ali sozinha? Não conhecia aquele sítio nem aquelas mulheres. Não sabia onde estava, e ninguém lhe explicava nada.

Isabel tratava muito melhor as suas bonecas, e estava farta daquilo tudo, se pudesse não queria aqueles caracóis para nada.

Ir ao cabeleireiro era muito difícil, pior do que ir ao médico.
Depois de vários outros puxões, é que apareceu a mãe. Olhou para Isabel, e disse-lhe que ela estava linda, e que era preciso despacharem-se porque o comboio não ia esperar por elas. Não disse onde tinha ido, nem porque demorara tanto. Pagou a conta e saíram a correr.

Isabel bem se queixou do tempo que esteve só, do cheiro, do peso na cabeça, da fome, mas a mãe o que queria era não perder o comboio. Isabel com as pernas dormentes por tanto tempo ter estado sentada com aquele peso na cabeça, mexia-se o mais que podia.

Tinham muito para fazer em casa, antes da chegada do pai à noite.
Isabel, à hora de deitar, ainda tinha a cabeça quente e a latejar.

No dia em que vestiu o  vestido comprido de renda alugado, e colocou na cabeça a coroa que entretanto tinha servido para uma noiva casar, pensou que Deus com certeza já lhe tinha perdoado algum pecado  inventado ou não confessado, porque aqueles caracóis que lhe saíam naquele dia pelo rendilhado da coroa, tinham-lhe dado muitas dores de cabeça e de barriga.

É claro que Isabel não se lembra de ter havido alguma festa em casa. Não era habitual a família juntar-se para nada. No final da missa da comunhão solene, seria a procissão, com os meninos de fato e gravata e as meninas vestidas de branco, autênticos noivos em miniatura. Percorriam a aldeia em procissão, e depois era voltar para casa e tirar  o vestido.

Cada um em sua casa, teria a festa que os pais tivessem preparado para celebrar a ocasião. Para Isabel, ficaram as fotografias que o pai tirou durante a procissão. Nesse ano, o João também fez a sua comunhão solene, que por doença ainda não tinha sido feita.

Para recordar, ficou uma grande vontade de nunca mais voltar ao cabeleireiro.

Decisões


Na escola, as aventuras de Isabel continuavam, deixando-a sempre perturbada. Era certo que na sua classe ninguém nutria uma grande amizade ou simpatia por ela. Ao contrário da maioria das colegas, mal as aulas acabavam ela punha-se a andar o mais depressa possível para casa. Pensava que seria divertido ficar sentada num qualquer degrau da casa desta ou daquela a fazer os deveres em grupo, mas estava proibida de ficar pela rua, e assim fazia os trabalhos de casa sozinha e não participava das brincadeiras de final de tarde.


Tinha muita curiosidade, mas tinha medo de chegar atrasada a casa. Qualquer coisa mal feita, e a mãe dizia logo: “Faço queixa ao teu pai, negra seja eu como o fumeiro!”

Isabel tinha medo do pai e do seu olhar duro. Mas um dia a curiosidade foi maior. Por vezes, ela levava erros na tabuada e pensou que se a fizesse com as outras meninas seria melhor para ela. Juntou-se a um grupo da sua classe, e nessa tarde ficou pela rua.

Ficou com o grupo de colegas sentada ao sol nos degraus de casa de uma delas, inteligente, mas rufia, a tal que em tempos lhe tinha feito a vida negra, mas isso estava agora adormecido e ela queria muito saber o que faziam elas depois dos trabalhos de casa feitos. Calada foi ouvindo o que diziam, e foi fazendo os deveres.

A certa altura, a tal miúda que era a mais abelhuda disse:

- “No fim vamos lá para dentro para a sala, e cada uma tem que saltar para cima da mesa, tirar as cuecas e mostrar se já tem pêlos aqui”, apontando para a sua zona púbica.

Houve logo quem dissesse “Eu mostro!”, e outras que disseram “Eu não mostro nada!”.

Isabel ficou calada, mais envergonhada que aflita, mas não deu parte de fraca e não disse nada. Logo se veria se mostrava alguma coisa. Ficou curiosa para saber o que se seguiria. Nem sabia se já tinha pêlos, mas queria saber como era tê-los.

Encostou-se a um canto da sala pensando que, se ficasse para o fim, até podiam esquecer-se de ver os seus pêlos púbicos. Afinal nunca ninguém lhe dava muita atenção.

A primeira a fazer a sessão de exposição, foi uma repetente já mais velha, sem qualquer tipo de vergonha. Levantou a saia muito depressa, e parecendo não ter cuecas, expôs com regozijo a sua zona púbica. Isabel ficou pasmada com o que viu. Uma zona muito negra, que dois palmos de mão não davam para tapar. Estava admirada. Nunca tinha visto tal coisa e assim, daquela maneira, parecia uma coisa má e feia. Quando chegasse a vez dela, todas iriam rir por não ter pêlos naquele sítio.

A diversão estava no apogeu, na terceira candidata, quando a mãe da miúda entrou em casa. Quando a senhora viu aquilo, desatou aos berros, a descompôr toda a gente, a ralhar com a filha, ainda que com os olhos esbugalhados para a miúda que em cima da mesa exibia o seu dote peludo. Esta saltou rapidamente da mesa e correu porta fora, e uma atrás da outra todas fugiram, deixando a miúda entregue à fúria da mãe.

Isabel escapuliu-se pela porta e só parou em casa. Estava ofegante como nunca, mas por sorte a mãe não estava em casa. Ainda começou a pensar no que seria se a mãe da colega fosse fazer queixa à professora; e se o pai soubesse, morreria de vergonha. Mas pensou que talvez isso não acontecesse, porque todas sabiam que a filha é que tinha inventado aquele jogo, e assim ela seria a mais castigada.

Isabel tinha ficado curiosa. Queria muito saber se já tinha pêlos, nunca tinha reparado, nem sabia que os iria ter. Meteu-se dentro de casa e no seu quarto meio escuro, desceu as cuecas e sentada na beira da cama olhou com muita atenção aquela zona. Depois de muito se afirmar, reparou que aquela zona não estava preta, mas os seus pêlos estavam lá e até conseguiu arrepelar-se em jeito de confirmação. Também tinha pêlos, e não os ia mostrar a ninguém. Isabel não entendeu porquê, mas isso tranquilizou-a.
No dia seguinte, na escola ninguém falou de nada.

Isabel decidiu não contar à mãe e resolveu que a partir daí passaria a tomar banho sozinha. Há muito tempo que achava que a mãe não a secava bem.


Naquele dia, Isabel cresceu mais um bocadinho.

Os tamancos

Desde que a avó Teresa vivia na aldeia, Isabel ia muitas vezes visitá-la e passava longas tardes em sua casa. Um dia não demorou como era costume, e chegou a casa aos gritos.


Depois de muito teimar, Isabel conseguiu que a mãe lhe comprasse na mercearia, uns tamancos que lhe pareciam iguais aos das varinas da Nazaré. Eram altos, como os sapatos altos da tia e da professora. Com eles nos pés ficava muito mais alta.
Um dia, depois de muito insistir, conseguiu sair de casa para visitar a avó, com os tamancos nos pés.
Ia à rua de sapatos altos. Toda vaidosa, lá foi ela estrada abaixo, mas percorrendo o caminho pela valeta.

A mãe dizia-lhe sempre para ir pela borda da estrada, e ela ia tão pela borda que ia pela valeta, onde corria muitas vezes água da chuva, ou água saída de  casas, o que tornava as pedras da valeta ainda mais escorregadias.

De facto ir pela valeta era divertido, mas Isabel veio a reconhecer mais tarde que era também muito mais perigoso. Naquele dia foi caminhando, marcando o passo com agilidade, ora um ora outro pé, até que aquela dança deu numa queda. Bateu com a cabeça numa pedra e pronto, partiu a cabeça. Sentiu uma dor e mal pôs a mão na cabeça, viu que estava cheia de sangue a correr-lhe pela cara. Tentaram ajudá-la mas ela não respondeu. Não ouvia o que lhe diziam.
Vendo todo aquele sangue, com os seus tamancos na mão, correu e gritou pela mãe como nunca, estrada acima. Pensava que ia morrer. Não se lembra de ter feito aquele caminho tão depressa.

Atravessou o canto a gritar tanto, que a mãe já vinha ao seu alcance quando ela entrou no terraço do quintal da avó. Ralhou com ela, mas acalmou a Isabel, que em vez de gritar passou apenas a chorar, que se lembrou, entretanto, que à noite tinha que prestar contas ao pai.

Tinha de ir levar pontos na cabeça, porque o corte era grande, foi o que disse a mãe. A mãe foi com ela à farmácia onde o empregado de bata branca a levou para uma sala que cheirava a hospitais. Deu-lhe uma injecção, limpou e desinfectou o golpe e pôs-lhe três agrafos. Aquilo doía muito e Isabel estava dorida.

À noite,  a mãe explicou ao pai o sucedido.


- “Onde estão os tamancos?” - perguntou ele, com uma voz autoritária.

Os tamancos de salto alto com que Isabel tanto gostava de andar, foram fazer companhia ao triciclo no tecto do casarão onde o avó trabalhava, pendurados tão alto que nem se lhes conseguia ver a cor.

Aconchego na cama, um carinho na face ou na cabeça, é que a Isabel nunca teve, muito menos nesse dia. À noite deitou-se com o aviso de que o seu galo cantaria à meia-noite, mais nada
.
 Isabel era uma menina triste. Assim adormeceu, com a visão dos tamancos perdidos  pendurados no tecto do casarão. E um latejar insistente na cabeça.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A praia

Muito cedo, o pai de Isabel decidiu que faria bem aos filhos apanhar banhos de sol e de mar, passando Isabel, desde então, alguns dias de Setembro numa aldeia, onde conseguia conjugar umas tardes de descanso junto a uma praia fluvial, com sombras frondosas que lembravam sombras do rio onde a família fazia os piqueniques nos finais de semana de Verão. Ele não gostava muito de praia, mas na beira do lago passava muitas horas a ressonar, a ler e também a passear de barco.

E se o pai de Isabel pensava em fazer alguma coisa isso cumpria-se.


Então, durante alguns anos a família de Isabel passou a ir alguns dias em Setembro - o mês de férias dos pobres - para a praia do Molho. Isto deixava a avó Olinda moída e muito aborrecida, pois ela não queria que António saísse de junto dela. Ficava doente, chorava e inventava coisas para evitar as ausências, mas não conseguia demovê-lo.

Lá iam todos num carro minúsculo, com o banco de trás improvisado uns dias antes pelo pai, até à praia, alugar uma pequena casa para passar alguns dias.

A casa tinha de ser barata e limpa, não precisava de ser grande, devia ficar perto da praia e do parque de merendas, e o senhorio tinha de ter um ar asseado, um indicador fiável da limpeza da casa.

Nessa praia fizeram férias sempre na mesma casa. Uma casa pequena, que parecia um abrigo - uma cozinha e sala minúsculas e dois quartos ínfimos, a casa de banho (se é que se podia chamar assim) era na rua. No quarto de Isabel, ela dormia para os pés e o João para a cabeceira, mas como eram poucos dias eles até se divertiam com isso. Em redor da casa, muitas galinhas e um burro passeavam constantemente, e para se andar naquele pátio, além de se ter de evitar os animais, tinha de se ver muito bem onde se punham os pés.

Uns dias antes da partida para a praia, a Graça preparava uma série de coisas. Costurava uma ou duas batas novas - os vestidos que usava - pois nunca tinha nem sonhava ter um fato de banho. Para Isabel, fazia em tecido vulgar uma espécie de fato de banho que era muito difícil de despir, um ou outro vestido, e o João ganhava sempre uns calções e umas camisetas novas. Era preparado um alguidar de loiça com os utensílios essenciais para cozinhar e comer, uma trouxa de roupa para fazer as camas, e um saco com mercearia. Juntava-se alguma roupa de vestir, e António encarrapitava as trouxas em cima do carro, por cima e por baixo de Isabel e do João, ao colo e entre as pernas da Graça, e lá iam eles com o carro aos solavancos, sempre carente de água no radiador, de modo a não terem de usar nada que estivesse na casa de aluguer, ou comprar alguma coisa, que o dinheiro era um bem escasso.

Sempre que chegavam, a primeira coisa que Graça e Isabel faziam era limpar a casa de alto a baixo, que assim ficava limpa para o resto do ano. Arrumavam-se os utensílios do senhorio e passava a usar-se somente o que tinha sido levado de casa.

Isabel lembra-se de acordar todos os dias muito cedo com o zurrar do burro. Era a hora de ir ao padeiro, e o pão era particularmente saboroso.

O pior mesmo eram os banhos de mar forçados, que o banheiro era encarregado de dar a Isabel. “Só mais um”, dizia ela apertando o nariz com os dedos muito aflita, e o banheiro pegava-a pelos braços e quando vinha uma onda lá mergulhava, sôfrega. Mal conseguia manter-se de pé. Era o momento pior de cada dia.

Longe de casa e da avó Olinda, as discussões diminuíam. Só isso justificava todos os mergulhos sofridos.

O que ela mais gostava era das merendas na praia debaixo do toldo, do pão a saber a bolo com marmelada, e do café que a mãe levava num termo. A mãe aproveitava para refazer uma camisola para Isabel ou João. Não havia brinquedos, mas inventava-se sempre que fazer. Bolos de areia, apanha de pedrinhas ou conchas, jogar às escondidas, ou simplesmente não fazer nada. Qualquer coisa ajudava a passar o tempo.

Tudo aquilo era bom de mais. E quando chegava o dia de voltar para casa, Isabel trazia sempre lágrimas nos olhos. Saudades da praia, dos passeios de barco no lago, das cestas, do pão, do burro, do cheiro do mar. Tinha que voltar para o canto, para o quarto escuro e para a escola.

Assustava-se sempre que entrava naquele canto.

Os medos

Nos domingos de sol, Isabel adorava ir sentar-se na porta da mercearia que nesse dia da semana estava fechada. Ao domingo, só as tabernas estavam abertas, local escolhido pela maioria dos homens para conversar e beber, ao sabor de tremoços ou amendoins.

Sentada ao sol, ela nem conseguia mover-se de tanta moleza e preguiça. “O sol faz mal”, dizia por vezes uma ou outra mulher que passava, mas ela deixava-se estar. Em casa não batia o sol e ali ela sentia-se estranhamente livre.

Quando a mãe lhe dava uns tostões, ela costumava ir até ao café ver um pouco de televisão. O facto de sair de casa para ver carros às voltas naquela pequena caixa mágica, era muito bom.

Para ir ao café era necessário os miúdos como Isabel levarem alguns tostões. A senhora do café sentava os miúdos ao fundo do café, encostados à parede, e a certa altura passava com um frasco de rebuçados para eles comprarem. Dois rebuçados, um tostão. Quem não tivesse tostões, vinha para a rua. À mesa, os miúdos só se podiam sentar acompanhados por adultos, e o consumo legitimava a ocupação da mesa.

Isabel não se lembra de se ter alguma vez sentado à mesa; só muitos anos mais tarde é que isso veio a acontecer.

Mas com a benevolência da mãe e os tostões que ela lhe dava, Isabel lá ia até ao café de vez em quando. Os pais costumavam ficar em casa a dormir a sesta, e Isabel até ia feliz porque gostava de os sentir unidos. Um dia, porém, Isabel viu as horas passar e ninguém a foi procurar ao café.

Passou-se a tarde, comeu os rebuçados todos e ninguém a procurou.

Chegou a noite e ela começou a ter medo de ir para casa. O canto e o beco eram muito escuros. Contava-se que, por vezes, passava por lá um homem meio-cavalo, que dormia lá, e Isabel tinha medo. Nunca tinha ficado até tão tarde na rua, e já não sabia o que fazer.

Já estava há muito tempo a ocupar o mesmo lugar no café, e a senhora disse-lhe que era melhor voltar para casa. Isabel saiu, com muito medo, e veio sentar-se à entrada numa grande pedra onde o avô Francisco costumava sentar-se ao final da tarde.

Estava muito escuro e sempre que Isabel sentia alguém a passar, o coração batia-lhe com tanta força que parecia saltar-lhe do peito. Pensou que o melhor era pedir a alguém que a levasse, mas ela estava tão aflita que nem conseguia falar.

A única maneira era ganhar coragem, e correr muito depressa para casa sem olhar para trás.  Começou a pensar que seria o fim da sua vida, mas ali também estava morta de susto. Encheu-se de coragem, pôs-se de pé e correu, só parando quando entrou no seu quarto negro.

Isabel nunca entendeu o que se passou naquele dia em sua casa.

Ninguém a procurou, ninguém foi saber dela, nem mesmo ao seu quarto.

No quarto dos pais havia luz, que se via pelos interstícios da porta, mas o quarto do João estava às escuras. Isabel encolheu-se na sua cama e de tanto cansaço aflito, adormeceu e não se lembrou sequer da visita da fome.

Nunca ninguém lhe explicou porque a deixaram sozinha, já que nunca a deixavam ir a lado nenhum. Só muito mais tarde Isabel voltou àquele café.

As amigas



Isabel já tinha algumas amigas na escola, mas vivia momentos de aflição, porque lhe aconteciam situações que ela não conseguia gerir nem controlar.

Como se não bastasse a dificuldade de aprender a tabuada, e os erros que fazia nos ditados por causa da troca constante do “nh” pelo “lh”, começou a ser chantageada por uma miúda reguila e impertinente, que a fazia viver em constante sobressalto.

Todos os dias de manhã Isabel levava para o lanche do recreio, um pão de bico com marmelada, que a mãe lhe preparava. Quando chegava à escola, tirava-o da sacola e colocava-o por baixo da carteira. Mas sempre que o procurava, chegada a hora da merenda da manhã, o pão já lá não estava.

Demorou tempo a descobrir, mas a certa altura a colega reguila da frente disse-lhe:

- “Se dizes à professora que te tiro e como o pão, digo-lhe que tu dizes muitas asneiras feias ” - e desatava a dizer uma enxurrada de palavrões que Isabel desconhecia, mas que deviam ser com certeza muito feias, dada a cara de raiva com que eram ditas.

Além disso, essa miúda exigia de Isabel todos os dias um tostão ou dois, caso contrário o rol de asneiras era ainda maior e mais grave, e com testemunhas sempre inventadas.

Isabel, no início, cumpria o que a colega a intimidava a fazer. Como tinha fome, começou por ir quase todos os dias comprar um pão para merendar no recreio, numa pequena mercearia que havia ao lado da escola. Em casa convencia a mãe a dar-lhe um tostão, coisa que a mãe de vez em quando fazia, mas que um certo dia se negou a fazer. Queria explicações. Graça queria saber para que queria a filha, todos os dias, um tostão ou dois. Isabel, nesse dia, foi para a escola a chorar, cheia de medo.

Um dia, a senhora da mercearia encontrou a Graça e disse-lhe:

- “Tenho na mercearia uma pequena conta de pão que a sua menina lá vai buscar quase todos os dias, ela diz sempre que a mãe depois paga, mas como a Graça não tem passado, estou a dizer-lho agora”.

Graça ouviu, estupefacta. Todos os dias enviava uma merenda para a Isabel, e pensou que algo se devia estar a passar.

No dia seguinte, a cena dos tostões repetiu-se e Isabel viu-se obrigada a contar à mãe o que se passava, por tanto ela insistiu em obter um esclarecimento. Graça pegou na mão da filha e foi com ela até à escola:

- “Vamos falar com a professora, que isto vai ter de se esclarecer.”

Naquele tempo, não era usual as mães irem à escola falar com os professores. Só no início e no final do ano escolar.

Pelo caminho, Isabel ia tão aflita que mal conseguia andar.

Mal chegaram à escola, Graça foi pagar a conta do pão na mercearia do lado da escola com vários pedidos de desculpas. Uma despesa que correspondia a mais de vinte pães. Ambas estavam um pouco envergonhadas com a situação.

Na rua em frente à escola, rapidamente se juntou uma pequena multidão, numa grande algazarra. Mal a professora chegou, mandou calar a miudagem e começou a conversa com a mãe de Isabel.

Graça queria ser esclarecida acerca do desaparecimento do pão da filha dentro da sala de aula, o que levou à conta na mercearia. Gostaria de saber porque precisava Isabel   quase todos os dias de lhe pedir dinheiro, que não sendo muito, era o suficiente para a deixar desconfiada. Quando não lho dava, Isabel ficava muito agitada.

O grupo em redor da professora, da Graça e da filha, tentava dar palpites, dizendo cada um dizia uma coisa distinta, e, de repente, tudo começou a ficar claro.

Foi chamada a menina que estava elencada para jurar em falso, que meio envergonhada e aflita acabou por contar tudo o que sabia. Foi uma confusão tão grande que nesse dia não houve mais aulas.

A mãe da miúda que roubava o pão foi chamada à escola. Nesse dia ficou tudo finalmente esclarecido. A professora castigou quem devia ser castigado. Isabel não sabia, nem conhecia as asneiras referidas. Dizia-lhe a mãe que essas palavras eram sapos feios a sair da boca de quem as dizia.

Mais tarde, quando Isabel ia para casa com a mãe, a porta de casa da colega intriguista estava aberta e Isabel viu que, além de ter ido para casa puxada pelas orelhas, estava debruçada numa cadeira e levava  palmadas no rabo com um cinto.

O pão de Isabel nunca mais desapareceu, nem lhe exigiram tostões, mas a manipulação das colegas continuou. Ninguém brincava com Isabel, nas rodas ao lenço, às escondidas e à apanhada, aos reis e às rainhas. Aquela menina comandava todas as outras.

Assim não era fácil andar na escola. A marmelada no pão sabia-lhe a amargo.


Preferia o pão da mercearia sem nada.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A escola



Num mês de Outubro, a Isabel foi para a escola. Para ela, aquilo era um mundo  desconhecido. Ainda não conhecia números nem letras, mas o pior é que não conhecia nenhuma menina. Sentia-se só e amedrontada. Era tudo demasiado novo para ela e isso era assustador. Naquela altura as aulas não eram mistas, e numa aula haviam meninos de todos os níveis de aprendizagem.

Meninas para um lado, meninos para outro, tanto dentro da aula como nos tempos livres. Altos muros separavam os recreios, pelo que nem o João ela conseguia ver. A Zézita, que entrou também para a escola esse ano, devia estar noutra classe porque nunca a encontrou no seu recreio, no caminho que fazia todos os dias de casa para a escola, ou na sua aula. Estava só, não conhecia ninguém, e as meninas olhavam-na com alguma estranheza e curiosidade.

A professora impressionava. Era uma senhora alta, sempre de saltos altos e de carteira, como não se lembrava de ver a mãe. A pele das suas mãos era muito macia, e as unhas sempre muito bem arranjadas, compridas e arredondadas, e muito brilhantes. Não devia lavar louça nem roupa como a mãe. Andava sempre de casaco comprido, o que lhe dava um ar imponente. Tinha ar de quem tudo sabe, o que de certa forma assustava, mas por outro lado fazia imaginar que não seria mau ser como ela quando se fosse grande. Nunca pensou em assustar ninguém quando fosse adulta, mas saber tudo devia ser muito bom.

Isabel tinha a sensação de que ali ninguém gostava dela. A professora sentou-a na segunda carteira da fila do meio, mesmo em frente ao quadro. Tinha como companheira na carteira, uma menina simpática, que parecia meiga e muito tranquila com quem Isabel passou a dar-se muito bem, mas que no grupo de todas as meninas da classe era um pouco isolada como ela. À frente da sua carteira, outras duas meninas, uma delas terrível, muito inteligente e conflituosa.

Depois de sentadas todas as meninas, sem se saber muito bem qual o critério adoptado, a professora colocava as mais velhas e repetentes e as meninas pobres que tinham piolhos na cabeça, e pulgas na roupa ou no corpo, bem ao fundo da sala, nas últimas carteiras.

Isabel lembra-se que as meninas mais velhas e as repetentes, que não faziam os trabalhos de casa ou se portavam mal, tinham muitas vezes como castigo, além das reguadas, dar banho com água fria às colegas que apareciam sujas na escola.

Também ela esteve uns dias ao fundo da sala quando teve papeira, pois também era aí que a professora colocava as meninas doentes.

Isabel começou a aprender na escola coisas novas, e algumas não tinham muito a ver com o alfabeto ou a matemática. Todos os dias fazia as letras e os números que a professora ordenava para casa. Tinha pena por não poder ter livros novos. Os seus eram sempre os que já tinham sido usados pelo João, que apesar de muito avisado, os deixava no final do ano algo mutilados. Isabel nunca reclamou, mas tinha pena por não ter um livro com cheiro a novo e com as folhas todas direitinhas.

Era preciso cumprir religiosamente tudo o que a professora mandava, pois a régua assustava. Todos os dias, meninas esticavam as mãos para levar com a régua, que devia doer porque deixava as mãos vermelhas e fazia chorar e gemer de dor. Quanto mais fugiam com as mãos, pior era. O melhor era ser forte, esticar bem as mãos, levar e ficar em silêncio, procurando evitar ao máximo fazer coisas que enervassem a senhora professora, pois há coisas que não são para repetir, como levar reguadas. Era assim que pensava Isabel.

Em casa procurava fazer tudo como devia ser. Nunca pediu a ajuda do irmão ou do pai. Mas muitas vezes, quando já ia para a escola, voltava atrás, para ler uma última vez a lição, e a mãe ouvir e dizer se estava bem.

Isabel tinha medo de dar erros e levar reguadas, e procurava unicamente a ajuda da mãe. Um dia, a professora, que colocava as meninas por ordem à volta da sua secretária para lerem a lição do dia, porque uma menina não sabia ler umas palavras, deu-lhe com uma  verdasca na cabeça que a pobre caiu redonda no chão. Isabel ficou cheia de medo, ainda que como recompensa pelo sucedido a professora tenha dito que aquela menina iria passar a ler sentada na sua cadeira.


Isabel vivia assustada. Continuava a crescer e a aprender muitas coisas além de ler e de escrever, mas tudo isso sempre com muito medo.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Imaginação


Isabel, João e os pais viviam numa casa da avó Olinda. Todos os meses, António pagava uma renda à sua mãe.



De todas as divisões, além da casa de banho inventada pelo pai, em frente à cozinha que não tinha janela e era escura, a divisão que Isabel menos gostava era do quarto dela. Ficava no corredor em frente ao do João, entre a sala e a casa de banho. Esta tinha sido uma divisão onde o pai trabalhava a consertar os rádios avariados dos amigos e vizinhos que a ele recorriam, por conhecerem essa sua faceta. Era também nessa divisão que a mãe de Isabel escutava as conversas que António tinha com Olinda antes de entrar em casa, e que eram a maioria das vezes, motivo de discórdias e violência entre ele e Graça.

Definitivamente, Isabel não achava graça nenhuma ao seu quarto. Tinha um pequeno buraco rectangular, uma janela que dava para a sala, a cama de ferro azul-fosco já com falta de tinta, uma mesa redonda pequena de um pé só, que abanava por todos os lados, e um guarda-vestidos velho e feio, sem espelho, pintados de cor de vinho, sem brilho, tudo sombrio, muito negro. Uma mesinha de cabeceira muito antiga completava o mobiliário.

Isabel sabia que aquele era o quarto possível, que os pais não podiam dar-lhe outro melhor, mas comparando com os quartos que via em casa da Zézita ou do Nuninho, onde já tinha ido com as primas brincar, sabia que o seu era feio. Mas nunca falou disso a ninguém. Imaginava que na sua sala, atrás da porta, existia uma escada que ela adorava subir e descer, e por cima uma outra casa linda com muita cor e luz, onde tudo estava muito ordenado, em divisões que no seu imaginário seriam as ideais para ela e para a sua família. Ninguém a proibia de imaginar e acreditar que isso era verdade.

Muitas vezes dizia para as suas bonecas - “A mãe vai lá cima buscar a papinha” - e escondia-se atrás da porta por um tempo, aparecendo depois à sua boneca – “Viste, não demorei nada…”. Chegou mesmo a contar e a falar com muito entusiasmo, desta parte imaginária da sua casa a algumas meninas da sua escola.
À Zézita não, pois ela sabia como era a sua casa. Podia espreitar pela passagem da figueira e ver que a casa de Isabel não tinha nenhum andar superior como a dela. Mas Isabel queria acreditar nisso até porque a sua paixão, subir e descer escadas, era tão forte que não podia deixar de imaginar isso nas suas brincadeiras solitárias.

Isabel imaginava muitas coisas, muitas vezes. O que ela adorava eram os dias em que a mãe, resolvia, por qualquer motivo, dar uma volta geral à casa, limpar móveis e mudar a cera do chão, e para tal precisava de ajuda. Falava a uma senhora que a ia ajudar, pelo menos pela Páscoa, e que sempre que lá ia, levava um bebé que Isabel ficava encarregue de cuidar. A senhora teve pelo menos oito filhos, o que significa que ela encheu várias vezes Isabel de alegria.

Nesse dia, a criança não tinha descanso. Isabel dava-lhe voltas a toda a hora, por tudo e por nada. Mudava-lhe a fralda constantemente, dava-lhe papa, água, adormecia-o ao colo, para depois o acordar e voltar a adormecer. Gostava de lhe pegar ao colo e de o deitar numa caminha improvisada por Graça para o efeito, para ver como dormia, mas também gostava de o acalmar e depois de o pôr a chorar. De vez em quando, a mãe de Isabel gritava a perguntar o que se passava com a criança. Isabel dizia sempre que estava tudo bem e dava um pouco de descanso ao bebé.

Sem maldade e porque gostava muito de fazer de mãe, ela fazia muitas malandrices aos bebés que passaram pelas suas mãos. Fazia mal por tanto bem querer. Mas aprendeu muito com esses dias e nunca ficou cansada. Ao final do dia, era com os olhos tristes que via o bebé partir com a mãe.

Com certeza nesse dia o bebé dormiria bem, porque estava cansado das voltas e reviravoltas que levara de Isabel, e esta imaginava que um dia teria um bebé a sério, só dela, e teria um quarto bonito para o deitar.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O Natal


Naquela noite, um barulho confuso, uma mistura de gritos vindos da entrada do canto, puseram em alerta os pais de Isabel.

Era véspera de Natal, e aquele barulho, àquela hora, ainda que não fosse tarde, alarmou os habitantes do canto. No meio daquele barulho todo, ouvia-se muito bem a voz grossa do avô Francisco, que parecia reclamar de qualquer coisa num tom aflito. O pai de Isabel foi a correr. Chico estava deitado no chão, e à volta dele dois homens tentavam ajudar a levantá-lo. Ou tinha sido uma pinguita a mais, ou o escuro do canto, ou ambas as coisas a fazê-lo tropeçar, e ao cair, colocou os pés e pernas em tal posição que não se conseguia mexer. Foi preciso a força de todos e alguns gritos de dor para tirar o avô do chão.

Já em casa, deitado na cama, António observou a perna do avô, e continuando a gemer de dores, tentou convencê-lo a entrar no seu pequeno Fiat, para o levar ao hospital, uma tarefa que se revelou de difícil concretização. A avó Olinda gritava como se lhe tivesse morrido gente, e com isso não ajudava nada.

Queixava-se da sua sorte e acusava-o de todas as pingas que bebia indevidamente.

A Isabel pensava que daquela vez é que não ia haver Natal. O pai decidiu que iria com o avô ao hospital, a Graça ia para casa com o João esperar por notícias e a Isabel ficaria a fazer companhia à avó até eles regressarem. Graça ainda ficou um tempo com as duas, mas depois foi com o João para casa. Ele andava adoentado e precisava de descansar.
Isabel dizia mal da sua vida. Não sabia o que dizer à avó que não parava de chorar. Parecia que tinha duas bicas nos olhos que teimavam em não secar:
- “Porque não fui eu para freira, maldita a hora em que me casei… este homem dá cabo de mim..” - e Isabel sem ter que lhe dizer para a acalmar, pedindo ao seu anjo da guarda para que o pai não demorasse muito.
Em silêncio, recolhida num canto da cama da avó, enrolada no cobertor de papo, que aquecia mas picava como tudo, Isabel ia pensando no Natal. Costumava ir sempre à missa do galo com o avô Chico. Esse ano isso já não ia acontecer. Em casa, apesar do João ter feito o presépio como era costume, o pai dava-lhe sempre um jeito, e desta vez não ir ter tempo nem paciência.

Todos os anos o João ia com alguns amigos até ao monte procurar musgo verde e fofo, do qual se faria o poiso do presépio. Alguns gravetos faziam de árvores e davam para montar a gruta do Menino, um pouco de serradura do casarão do avô para fazer as ruas, e um pedaço de espelho velho era o ideal para fazer um pequeno lago. Num canto da sala, no chão, montava-se o presépio com o Menino, que nessa altura era o centro das atenções do Natal.

Mas as atenções esse ano iriam todos para o avô, e se não discussões já seria muito bom. O que Isabel queria mesmo era ir para o seu quarto.
Quando o pai e avô chegaram já era muito tarde. A avó já tinha chorado tudo. Estava com uma cara que parecia muito mais doente do que o avô. O diagnóstico foi  uma perna partida numa região delicada, o que significava muito tempo parado sem trabalhar, o que não era nada bom. Depois do avô se deitar, a Isabel e o pai foram para casa.

Antes de adormecer, Isabel pensou que não tinha ido à missa do Galo, que a sala estava escura e o Menino estava às escuras. A mãe não tinha lá posto a lamparina. Aquele seria realmente um Natal diferente, mas com paz tudo estaria bem.

O Natal nunca era festejado em família. Cada um comia em sua casa o bacalhau com batatas e couves. A mãe costumava fazer umas broas doces, de que Isabel não gostava muito, porque tinham muitas passas de uva e figo. Não era habitual haver reunião de avós, tios, irmãos, ou outros parentes. A Isabel não se recordava de ver a família reunida. Ninguém ia a sua casa, nem eles iam a casa de alguém. E assim não se dava, mas também não se recebia.  Isabel nunca reuniu os pais e irmão em casa de ninguém. Se não fossem os presentes que o pai trazia da empresa onde trabalhava, não havia nada para ninguém. O tal boneco que ela tanto gostaria de ter, nunca o recebeu, e também não seria nesse ano que isso iria acontecer.
Os tios e os primos da cidade só na altura da Páscoa é que apareciam para beijar o Senhor Cristo em casa da avó Olinda, para depois levarem o folar que ela dava sempre a cada neto. No Natal, à tarde podiam ou não aparecer, e na troca de um beijo levavam uns trocados, pois a avó Olinda era benevolente para os netos da cidade.

O  dia de Natal em casa de Isabel era marcado pelo presépio, a ida à missa para beijar o Menino, um ritual que se repetia no Ano Novo e depois no Dia de Reis, e pelas broas doces que a mãe fazia em quantidade e guardava num gavetão no quarto do João.
Naquele Natal tudo começou por ser diferente, e Isabel só esperava que nesse dia os pais não desatassem a discutir. De manhã quando acordou, já não era cedo, mas deu um pulo da cama e foi até à sala. Queria ver o presépio e os presentes que o pai lá colocava.

Arregalou os olhos, nem queria acreditar. Uma luz intensa e brilhante, iluminava a gruta do Menino. O presépio estava lindo. Tirando o que ela via todos os anos na Igreja, aquele era o presépio mais lindo que ela já vira. O pai levantara-se cedo e preparara o presépio para o João e Isabel.  Em vez da lamparina, o presépio tinha luzes a sério. No pires colocado em frente à gruta já estavam alguns tostões. O rosto de Isabel iluminou-se.

Mas com o avô de cama, havia que providenciar a ajuda à avó, para que esta pudesse continuar a ir à praça vender os legumes. Foi estipulado pelo António que todos iam ajudar. Como o João estava adoentado e tinha de estudar, e a Graça era nora, não lhe era devido tratar do sogro na cama, e só teria que lhe fazer e dar o almoço. A Isabel foi destinado a lavagem dos pés do avô, todos os dias à noite.

Isabel não gostou da ideia, mas o pai mandava e ela tinha de obedecer. Todos os dias ao final da tarde, lá estava ela à beira dos pés da cama do avô. Este, com a ajuda de uma corda e de uma roldana, que António lhe aplicou no tecto do quarto, e com a força dos seus braços, lá se erguia e sentava na beira da cama.

Isabel, com algum esforço, lavava os pés ao avô. Eram pesados, com calos e dedos grandes, o que dificultava a tarefa. Era muito dificil secá-los entre aqueles dedos grossos. Por várias vezes, quando levantava os olhos e fitava o avô, via pelas pernas largas das cuecas uma pele castanho-escuro com muitos pêlos, uma pele engelhada. Não sabia o que era aquilo, mas ficava envergonhada. Algo lhe dizia que aquilo não devia estar à mostra. Um dia disse à mãe que não gostava de lavar os pés ao avô, que eram pesados, que não tinha força e não gostava de o ver em cuecas. Disse isto a chorar.

Graça deve ter falado com António , pois daí em diante passou a ser ele a lavar os pés do avô. Naquele Natal apesar do avô doente todos estavam mais unidos. Isabel pensou que afinal não foi tão mau assim o avô ter caído.