sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

As radionovelas


Todos os dias de manhã, à mesma hora, Isabel e a mãe iam para o quarto e ligavam a telefonia que estava na mesinha de cabeceira. O pai, engenhoso e esperto, conhecedor de muitos segredos da física, das válvulas e transístores, muito cedo montou o seu próprio rádio.

Elas não perdiam por nada a radionovela. A hora dos folhetins radiofónicos era sagrada. Sentadas na beira da cama, as duas viviam intensamente as histórias de amores e desamores, enganos, traições, mulheres frustradas, primas más e perversas, vidas mal contadas e amores incompreendidos, que faziam Isabel e a mãe vibrar muitas vezes de raiva e revolta contra o vilão, ou embevecer de pena e compaixão face aos injustiçados.

Estes minutos eram levados muito a sério, minutos escassos de fantasia que, muitas vezes, eram o oásis que tornava um dia diferente do anterior - dias que eram, no essencial, rotina em casa de Isabel, onde não havia televisão, jornais ou revistas, excepção feita à Crónica Feminina que Graça comprava semanalmente, o que dava a Isabel a ideia de que o mundo seria todo assim.

Isabel passava os dias a cantarolar os anúncios que ouvia na rádio: "... Se ao seu cabelo quer dar outra cor lave o cabelo com polycolor... acabam-se as mágoas, começa o amor depois de usar o polycolor...; …seja como as estrelas de cinema, use Lux…."

A partir de certa altura, estas sessões de novela radiofónica foram substituídas por notícias de uma guerra que estava a acontecer nas províncias do Ultramar. Queriam roubar aos portugueses as terras por eles conquistadas... mas quem queria roubar, e porquê? Mataram Humberto Delgado na fronteira com Espanha... Assaltaram o barco Santa Maria... Mas quem poderia cometer estas atrocidades?

Perante o teor destas notícias, a mãe de Isabel dizia-lhe sempre para não ter medo porque isso era muito longe. Isabel não percebia o que se passava, mas pelo que ouvia, se alguém queria roubar algo que não era seu, isso não era de todo correcto, e mesmo sendo longe tinha muito medo do que ouvia.

Os soldados portugueses iam para o Ultramar, e as famílias  ficavam aflitas. As mães e as noivas punham-se de luto e ficavam assim até o militar, seu filho, neto, noivo ou marido voltar. Eram pelo menos dois anos de luto, tristeza e autêntica viúvez.

Na aldeia parecia que ninguém sabia ao certo o que se passava. mas os rapazes tinham de passar todos por aquela guerra. Quando regressavam, muitos fugiam para outros países, revoltados com o que viam naquelas terras longínquas. Outros casavam lá e começavam uma nova vida. Muitos outros, como era noticiado, regressavam mortos à terra pátria.

Os que voltavam para as suas terras tinham sempre a aguardá-los uma recepção digna de reis: jantares, bailes, passeios pelas ruas com gente a aplaudir os heróis, e a família lá tirava o luto, passava a ir a festas e a romarias, sem nunca faltar uma peregrinação a Fátima pelo soldado regressado vivo.

Isabel via estes tipo de manifestações, mas não entendia, tinha dúvidas e medos acerca de tudo aquilo. Morria muita gente. Por mais que se esforçasse, como as notícias eram sempre curtas e pouco esclarecedoras, ela não entendia o que se passava, imaginando que um dia os pretos ainda apareciam na aldeia e faziam a toda a gente o que era noticiado que faziam no Ultramar.

Na rádio ouvia noticias a dizer que lá fora os pretos retalhavam os brancos com facas, arrombavam casas e destruíam tudo, chacinando cães e gatos.

Se os portugueses iam para essas terras ajudar os pretos a construir cidades, estradas e pontes, porque seria que eles estavam tão revoltados?

Isabel lembrava-se de um dia em que o pai, lá em casa, à hora da refeição, tinha comentado a hipótese de partir com a família para uma das províncias do Ultramar a convite da empresa onde trabalhava, para fazer lá o que sabia, na área da electricidade. Pensando sempre no bem estar da avó Olinda, e um pouco na calma que tinha no local onde trabalhava, o pai não aceitou o convite. Foi a primeira vez que Isabel pensou que por causa da avó algo corria bem. Ainda bem que o pai não os tinha levado para aquelas terras.

Entretanto, um casal amigo de Graça e António tinham ido para Moçambique trabalhar. Primeiro foi o pai, depois os filhos e a esposa. Durante muito tempo, as notícias que foram dando por carta eram as melhores. Vivia-se bem. Passeava-se muito. Vestia-se e comia-se com qualidade. Tinham criados para tudo. Até tinham construído uma casa.

Mas houve um dia em que a mãe e os filhos regressaram, e passado algum tempo o pai também. A casa construída ficou lá, e quase tudo o resto. Os pretos ficaram com tudo, iam destruir tudo porque não saberiam cuidar de nada, era o que eles diziam. De noite, deixaram de dormir com medo de serem assaltados e mortos.

Tiveram de fugir, trazendo só o que foi possível. Poucas foram as coisas que trouxeram - arcas em pau preto, serviço chinês, peças em dente de elefante -, e na aldeia, a casa estava alugada a uma família e tiveram de aguardar num espaço emprestado por familiares até a sua vagar.


Isabel conversou muito com a amiga regressada, e esta descrevia cenas que confundiam Isabel. Lá era tudo muito bom, tinham um criado preto que tratava da casa, lavava a roupa, cozinhava, arranjava tudo e vivia no fundo do quintal numa palhota. Muitas vezes, comia as sobras da comida deles e ganhava o pão que sobrava do dia anterior. A mulher dele cuidava do terreno da casa.

Isso intrigava Isabel, que não concordava com o que ouvia: "Afinal, a terra era nossa, porque a descobrimos, mas quem lá vivia eram os negros, portanto também era deles, que já lá estavam antes de nós aparecermos".

Isabel ouvia a amiga retornada - era assim que chamavam aos colonos regressados a Portugal - falar dos pretos como se eles não fossem gente, e isso revoltava-a. Afinal, os brancos tratavam os negros como escravos e isso até o pai dizia que já não existia. Havia muita coisa de que se falava em casa e nunca se podia falar na rua, mas aquilo por certo não estava correcto, de certeza que os pretos estavam fartos de aturar os brancos… de que lhes adiantava que os brancos construíssem cidades, pontes e estradas, se depois tinham de viver pior que animais. As casas ricas eram só para os brancos, assim como as roupas finas, os passeios, os cabeleireiros e os carros.

A mãe da amiga agora era uma senhora, ia ao cabeleireiro, pintava as unhas com verniz Mary Quant, mas chorava porque tinha deixado o que ganhara com o trabalho dos negros no Ultramar. A tia de Isabel também ia ao cabeleireiro, pintava as unhas, usava sapatos altos e carteira, e tinha ficado uma "senhora" só por ir para a cidade, sem ter sido preciso ir lá para fora e ter criados pretos. Tudo isto era estranho, e fazia Isabel pensar que devia ser burra porque não percebia muito do que se passava. Uns soldados iam aflitos para a guerra, outros fugiam dela, e havia também aqueles que inventavam doenças para lhe escaparem. 

Na altura do Natal, ouvia-se na rádio mensagens ditas a medo e em mau português: os desejos de boas festas cheio de "proospridades", a vontade de voltar com saúde e depressa a casa, "...beijos e abraços para todos que em breve vos espero abraçar…"

Aquela era uma guerra estranha, e chegavam notícias de crianças negras órfãs, sem casa ou família. Também os soldados brancos matavam sem compaixão os negros, também sem eles próprios saberem muitas das vezes porque o faziam. Brancos e pretos queriam as mesmas terras. Eram ordens.

Isabel pedia vezes sem conta aos pais que mandassem vir um menino de cor para eles criarem. Entretanto, Isabel e a mãe continuavam a ouvir novelas, e a rir, por vezes, das mensagens ditas aos solavancos pelos soldados distantes. Mas na cabeça de Isabel,o sonho de ter um menino negro para criar não a abandonava.

Um dia, António apareceu em casa com um boneco preto todo nu. Não era grande, como Isabel gostaria, mas mesmo assim a Isabel ficou feliz. Era como um menino lindo. Tratou de cuidar dele com muito carinho.

Para o berço de verga que o avô lhe tinha trazido da fábrica, Graça fez um pequeno colchão com palha, uma colcha de chita e uma almofada com folhos à volta, e com um novelo de lã velho, Isabel fez uma colcha em ponto baixo, que ela já sabia fazer muito bem. Parecia uma cama de bébé a sério, como ela nunca tinha visto.

E o melhor é que Isabel podia dar banho ao seu boneco as vezes que lhe apetecesse. Ele era de plástico, iria durar toda a vida, e ela iria fazer-lhe um grande enxoval, pois já fazia muitas coisas de costura e malha, e com a ajuda da mãe ia conseguir vestir o seu novo boneco. Sentava-se ao canto da porta e passava horas intermináveis a fazer cuecas, pequenos vestidos, camisolas tricotadas, de dimensão minúscula, o que provocava a admiração de Graça, ao ver a habilidade da filha.

Guardava tudo religiosamente numa caixa de lata que a senhora da mercearia lhe oferecera, que cheirava a rebuçados e em toda a volta e na tampa, tinha desenhada a história da gata borralheira.

Com o correr dos dias, ia percebendo que existia um mundo muito complicado longe de si. Não era só em sua casa que havia mal entendidos e discussões, mas seria bom que um dia todos vivessem em paz. Como ela gostaria que a sua mãe nunca mais andasse de noite pelo corredor a chorar e a dizer que se matava e se ia atirar ao poço...


Qual seria a causa da guerra constante dos pais?

O coração de Isabel era pequeno para tanto sofrimento.

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