Primeiro a casa da avó Olinda era de terra batida, negra como a sua roupa.
Um quarto ao fundo dessa sala e mais outro ao lado, e uma espécie de cozinha com lume feito directamente no chão faziam a casa dela.
Mais tarde convencidos pelo filho António, os avós Olinda e Francisco, fizeram uns melhoramentos na casa - uma sala mais pequena, com soalho e forro a madeira ,o quarto com igual preparo, um corredor largo a dar para uma cozinha nova que a avó pouco usava, habituada que estava ao seu borralho, e ao lado uma divisão de arrumos. Casa de banho não havia. A avó aquecia ao lume um panelão de água, e lavava-se junto ao borralho, ou quando estava doente, fechada no quarto.
Agora, em vez de varrer o chão da sala negra de terra batida e esfregar o quarto com sabão amarelo, Isabel também tinha de esfregar o chão da sala. Mas por vezes até achava graça, desde que a avó não fosse para lá ditar sermões de compostura.
No quintal da avó, havia uma zona em cimento, onde o João, antes de partir a cabeça, fazia acrobacias com o triciclo. Depois deste incidente, o triciclo foi pendurado muito alto, no casarão grande onde o avô Chico trabalhava.
Separado por um pequeno muro de tijolos aos buracos, onde a avó Olinda enfiava os rolos de fios de cabelo que montava agilmente com os dedos, sempre que penteava e refazia a sua trança, havia uma parte do quintal que tinha um poço muito fundo, uma capoeira com galinhas, e uns currais onde a avó criava os porcos. Ao lado do casarão, uma garagem onde António guardava o seu pequeno e velho Fiat, mas muito bem cuidado e renovado por ele.
No quintal viam-se três arvores, uma laranjeira pequena, que dava algumas laranjas que a avó dizia ter sempre contadas, uma figueira ao canto da capoeira das galinhas, que convidava a brincadeiras de trepar, coisa que João e Isabel estavam completamente proibidos de fazer, e uma nogueira logo à entrada, onde António instalara uma torneira e um tanque em cimento, para as mulheres daquele beco, a Graça e a mãe Olinda, lavarem a roupa e deixarem de lado o poço que estava em vias de passar a fossa da casa.
A avó passava a vida a dizer que as nozes estavam todas contadas, que não eram para apanhar, nem as do chão. E passava o tempo a dizer isto, acerca das nozes e das laranjas.
Isabel, um dia, contou as laranjas: eram dezassete. Não sabe se comeu alguma, mas lembra-se que pedia a Deus que nenhuma desaparecesse, porque ia ouvir da avó com certeza.
Mas, a nogueira era muito alta... como poderia a avó manter contadas todas as nozes, incluindo as que estavam no cume, e que nem os olhos alcançavam?
De vez em quando, do chão ou de um ou outro ramo mais escondido, ela tirava uma. Estava a pecar. E depois, a noz era dificil de descascar. Deixava-lhe as mãos amarelas. E no final sabiam mal. Devia ser do sabão de lavar a roupa, pois o tanque estava virado para o tronco da nogueira, e corria para lá.
Um dia, depois de apanhadas e secas todas as nozes, a avó ensacou-as e arrumou-as no quarto de arrumos ao lado da cozinha nova, onde cheirava a tudo menos a comida.
Mais tarde, comentou que lhe faltava um saco, que todos procuraram. Aquela divisão era escura. Lá dentro a avó guardava tudo. Sacos, sachos e enxadas, alguidares, batatas em tabuleiros de madeira feitos pelo avô, roupa velha, uma infinidade de coisas, tudo sem grande ordem.
A Isabel entrou ali, tacteou, e rapidamente gritou - "Estão aqui!"-, ao que a avó Olinda logo respondeu: - "Pudera, está farta de roubar delas, sabia muito bem onde estavam…"
Isabel ficou triste. Todos acreditaram na avó, e ninguém sequer pensou que ela dizia a verdade. Foi o acaso. Isabel nunca tinha ido roubar ao saco das nozes. Roubar? Ela? As nozes até eram amargas.
Todos se riram, e Isabel chorou, pelo menos de indignação. Nem a mãe acreditou nela.
- "São crianças..." - foi o que mais se disse.
Isabel ficou triste e aquele episódio marcou-a para sempre. Ela nunca mentia, nunca havia mentido.
Um domingo de manhã, o dia nasceu com muita chuva. De casa de Isabel ela ouvia vozes altas a ralhar sem entender o que se passava. Ouvia em casa da avó, o pai e o avô a falarem alto, sem entender nada. Pôs-se à janela da sala e espreitou. Nem queria acreditar no que via. Apareceu a avó com uma camisa que mal lhe tapava o rabo, e correu para debaixo das beiras do curral dos porcos. A valeta cheia de água ensopou-a até à cinta. A avó quase nua, toda molhada, com a camisa colada ao corpo, gritava que queria morrer, vezes sem fim.
Parecia estar doida. De repente, aparecem também à chuva o pai e o avô de Isabel, a vociferar palavras que não davam para entender. Um agarrou-lhe pelas pernas, outro pelos braços e, à força, sempre com ela a espernear levaram-na de volta para dentro de casa. O avô só dizia: "Pare de escoicinhar, sua vaca..."
Isabel nunca soube muito bem o que se passou, mas era a primeira vez que via o pai enfrentar a avó, e fazer algo contra ela. Sentiu-se um pouco vingada. Para ela, aquela avó era má, quezilenta e chata, e estava a ser castigada. Naquele beco do canto não se respirava a paz, e muitas vezes ela era culpada.
A guerra não era só no Ultramar. Só que no canto os pretos e os brancos eram outros.
Isabel vivia revoltada com tudo aquilo. Sem provas de carinho e afecto, sem sentir tranquilidade e cada vez mais assustada, Isabel só queria que todos fossem amigos.
1 comentário:
Mais uma história menos bonita "em si mesma", com alguma violência á mistura, mas que apetece ler.
Mais um momento muito duro para a Isabel.
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