segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O Natal


Naquela noite, um barulho confuso, uma mistura de gritos vindos da entrada do canto, puseram em alerta os pais de Isabel.

Era véspera de Natal, e aquele barulho, àquela hora, ainda que não fosse tarde, alarmou os habitantes do canto. No meio daquele barulho todo, ouvia-se muito bem a voz grossa do avô Francisco, que parecia reclamar de qualquer coisa num tom aflito. O pai de Isabel foi a correr. Chico estava deitado no chão, e à volta dele dois homens tentavam ajudar a levantá-lo. Ou tinha sido uma pinguita a mais, ou o escuro do canto, ou ambas as coisas a fazê-lo tropeçar, e ao cair, colocou os pés e pernas em tal posição que não se conseguia mexer. Foi preciso a força de todos e alguns gritos de dor para tirar o avô do chão.

Já em casa, deitado na cama, António observou a perna do avô, e continuando a gemer de dores, tentou convencê-lo a entrar no seu pequeno Fiat, para o levar ao hospital, uma tarefa que se revelou de difícil concretização. A avó Olinda gritava como se lhe tivesse morrido gente, e com isso não ajudava nada.

Queixava-se da sua sorte e acusava-o de todas as pingas que bebia indevidamente.

A Isabel pensava que daquela vez é que não ia haver Natal. O pai decidiu que iria com o avô ao hospital, a Graça ia para casa com o João esperar por notícias e a Isabel ficaria a fazer companhia à avó até eles regressarem. Graça ainda ficou um tempo com as duas, mas depois foi com o João para casa. Ele andava adoentado e precisava de descansar.
Isabel dizia mal da sua vida. Não sabia o que dizer à avó que não parava de chorar. Parecia que tinha duas bicas nos olhos que teimavam em não secar:
- “Porque não fui eu para freira, maldita a hora em que me casei… este homem dá cabo de mim..” - e Isabel sem ter que lhe dizer para a acalmar, pedindo ao seu anjo da guarda para que o pai não demorasse muito.
Em silêncio, recolhida num canto da cama da avó, enrolada no cobertor de papo, que aquecia mas picava como tudo, Isabel ia pensando no Natal. Costumava ir sempre à missa do galo com o avô Chico. Esse ano isso já não ia acontecer. Em casa, apesar do João ter feito o presépio como era costume, o pai dava-lhe sempre um jeito, e desta vez não ir ter tempo nem paciência.

Todos os anos o João ia com alguns amigos até ao monte procurar musgo verde e fofo, do qual se faria o poiso do presépio. Alguns gravetos faziam de árvores e davam para montar a gruta do Menino, um pouco de serradura do casarão do avô para fazer as ruas, e um pedaço de espelho velho era o ideal para fazer um pequeno lago. Num canto da sala, no chão, montava-se o presépio com o Menino, que nessa altura era o centro das atenções do Natal.

Mas as atenções esse ano iriam todos para o avô, e se não discussões já seria muito bom. O que Isabel queria mesmo era ir para o seu quarto.
Quando o pai e avô chegaram já era muito tarde. A avó já tinha chorado tudo. Estava com uma cara que parecia muito mais doente do que o avô. O diagnóstico foi  uma perna partida numa região delicada, o que significava muito tempo parado sem trabalhar, o que não era nada bom. Depois do avô se deitar, a Isabel e o pai foram para casa.

Antes de adormecer, Isabel pensou que não tinha ido à missa do Galo, que a sala estava escura e o Menino estava às escuras. A mãe não tinha lá posto a lamparina. Aquele seria realmente um Natal diferente, mas com paz tudo estaria bem.

O Natal nunca era festejado em família. Cada um comia em sua casa o bacalhau com batatas e couves. A mãe costumava fazer umas broas doces, de que Isabel não gostava muito, porque tinham muitas passas de uva e figo. Não era habitual haver reunião de avós, tios, irmãos, ou outros parentes. A Isabel não se recordava de ver a família reunida. Ninguém ia a sua casa, nem eles iam a casa de alguém. E assim não se dava, mas também não se recebia.  Isabel nunca reuniu os pais e irmão em casa de ninguém. Se não fossem os presentes que o pai trazia da empresa onde trabalhava, não havia nada para ninguém. O tal boneco que ela tanto gostaria de ter, nunca o recebeu, e também não seria nesse ano que isso iria acontecer.
Os tios e os primos da cidade só na altura da Páscoa é que apareciam para beijar o Senhor Cristo em casa da avó Olinda, para depois levarem o folar que ela dava sempre a cada neto. No Natal, à tarde podiam ou não aparecer, e na troca de um beijo levavam uns trocados, pois a avó Olinda era benevolente para os netos da cidade.

O  dia de Natal em casa de Isabel era marcado pelo presépio, a ida à missa para beijar o Menino, um ritual que se repetia no Ano Novo e depois no Dia de Reis, e pelas broas doces que a mãe fazia em quantidade e guardava num gavetão no quarto do João.
Naquele Natal tudo começou por ser diferente, e Isabel só esperava que nesse dia os pais não desatassem a discutir. De manhã quando acordou, já não era cedo, mas deu um pulo da cama e foi até à sala. Queria ver o presépio e os presentes que o pai lá colocava.

Arregalou os olhos, nem queria acreditar. Uma luz intensa e brilhante, iluminava a gruta do Menino. O presépio estava lindo. Tirando o que ela via todos os anos na Igreja, aquele era o presépio mais lindo que ela já vira. O pai levantara-se cedo e preparara o presépio para o João e Isabel.  Em vez da lamparina, o presépio tinha luzes a sério. No pires colocado em frente à gruta já estavam alguns tostões. O rosto de Isabel iluminou-se.

Mas com o avô de cama, havia que providenciar a ajuda à avó, para que esta pudesse continuar a ir à praça vender os legumes. Foi estipulado pelo António que todos iam ajudar. Como o João estava adoentado e tinha de estudar, e a Graça era nora, não lhe era devido tratar do sogro na cama, e só teria que lhe fazer e dar o almoço. A Isabel foi destinado a lavagem dos pés do avô, todos os dias à noite.

Isabel não gostou da ideia, mas o pai mandava e ela tinha de obedecer. Todos os dias ao final da tarde, lá estava ela à beira dos pés da cama do avô. Este, com a ajuda de uma corda e de uma roldana, que António lhe aplicou no tecto do quarto, e com a força dos seus braços, lá se erguia e sentava na beira da cama.

Isabel, com algum esforço, lavava os pés ao avô. Eram pesados, com calos e dedos grandes, o que dificultava a tarefa. Era muito dificil secá-los entre aqueles dedos grossos. Por várias vezes, quando levantava os olhos e fitava o avô, via pelas pernas largas das cuecas uma pele castanho-escuro com muitos pêlos, uma pele engelhada. Não sabia o que era aquilo, mas ficava envergonhada. Algo lhe dizia que aquilo não devia estar à mostra. Um dia disse à mãe que não gostava de lavar os pés ao avô, que eram pesados, que não tinha força e não gostava de o ver em cuecas. Disse isto a chorar.

Graça deve ter falado com António , pois daí em diante passou a ser ele a lavar os pés do avô. Naquele Natal apesar do avô doente todos estavam mais unidos. Isabel pensou que afinal não foi tão mau assim o avô ter caído.

1 comentário:

Anónimo disse...

De facto este blog é um manancial de surpresas, em cada história.
E esta foi mais uma, que - no fim de contas - me fez sorrir. No final. Pela conclusão.