domingo, 21 de fevereiro de 2010

As excursões

Quando era mais miúda, nas brincadeiras que fazia com o João, este costumava incentivá-la a brincar aos casados. Isabel não achava muita piada. Era uma brincadeira que não a fazia rir, e até lhe metia alguma confusão. Alguma coisa a incomodava. Recorda-se que tinha que se deitar no chão e o irmão deitava-se em cima dela, e dava pulos em cima dela. Dizia ele que era assim que faziam os casados. Ela não via mal nenhum nisso, mas achava estranho ter de brincar daquela forma só quando a mãe saía para algum lado.

Um dia, a avó comentou com os pais em frente dos irmãos: "a Graça deixa-os sozinhos e eles só fazem o que não devem… percebem, não percebem... os cachopos são muito atrevidos…"

Isabel olhou para o João e para a avó, para o pai e para a mãe, e sentiu que alguma coisa não estava bem, mas não sabia o que era. Sentiu cair sobre ela um peso do tamanho do mundo. Ela também brincava às mães com as suas bonecas, e não era mãe delas. Será que a avó tinha razão, e que brincar aos casados com o irmão era pecado?


Tanto o João como a Isabel  nunca falaram neste assunto, mas não voltaram a brincar aos casados.
O João nunca mais convidou a irmã para brincar, nem à carica, ao botão, ou às escondidas. A mãe e o pai também nunca comentaram nada.

De vez em quando, em alturas de brincadeiras no quintal, quando a avó aparecia, olhava para ambos com o semblante carregado, abanava a cabeça parecendo insinuar algo, o que causava um grande mau-estar a Isabel. O que João pensava, Isabel não sabia, nunca soube, não lhe interessava, mas não gostava daquele abanar de cabeça da avó.

No lavar das suas hortaliças, deixava sair, por vezes, entre dentes um sibilar que, repetido, assustava Isabel. A menina sentia-se desconfortável e com medo. Nunca comentou este desconforto, mas essa brincadeira de infância, carregou-a em silêncio, como um fardo durante muito tempo.

Passava algum tempo em casa da Zézita, onde era sempre bem recebida. A existência de um telefone naquela casa era algo que atraía muito Isabel. Fazer de conta que telefonava era muito interessante, mas falar a sério com alguém devia ser óptimo. A Isabel pensou em ser telefonista. O telefone era mágico, fazia-a tremer de alto a baixo. Ouvir pessoas do outro lado era uma coisa diferente.

Entretanto, a avó Teresa tinha deixado a quinta, e vivia na aldeia numa casa que a filha Graça herdara de uma madrinha, e assim era para lá que Isabel ia muitas vezes.

Ali ninguém a acusava de nada, sentia-se livre, capaz de fazer tudo o que lhe apetecesse. Podia mexer em tudo, comer bolachas ou biscoitos, e toda a  fruta que houvesse. Varria a casa da avó sem ser obrigada, e no quarto do Nélito ler livros de cowboys, do Tio Patinhas e todo o tipo de revistas de banda desenhada. Colocados a monte sem qualquer ordem, os livros e as revistas do Nélito eram um manancial a descobrir.
As visitas à casa da Zézita, e as visitas à avó era o que Isabel mais gostava de fazer.

A avó Teresa quase nunca estava em casa. Sempre envolvida em novos negócios, que tanto podiam ser venda de fruta ou de peixe, criação de galinhas ou de porcos, tinha sempre muito que fazer pela rua. Como não sabia ler nem escrever, Teresa não conseguia ser bem sucedida em nenhum dos trabalhos em que se envolvia. Dos negócios dela, quem tirava mais proveito eram os clientes que lhe compravam as coisas e nunca pagavam.

Quem tomava conta da casa era a mãe de Teresa, Júlia, uma bisavó como nunca existiu uma outra. Toda a casa estava ao seu cuidado. Tinha sempre as refeições da casa feitas a horas, e lá ia tratando de toda a lida de casa sem a Teresa interferir muito. Tanto o Nélito como o Orlando, gostavam muito de tudo o que a avó Júlia fazia. Para ela tudo estava bem. Vivia em paz com tudo e com todos, sem nunca exigir, reclamar, ou pedir fosse o que fosse. Era uma santa mulher, como dizia muitas vezes António.

A avó Teresa andava sempre contente, parecia que todos gostavam dela e se alguma coisa corria mal, punha-se a andar e não ligava mais ao assunto. Claro que Isabel nunca viu as duas avós, a Teresa e a Orlanda, a conversarem, nem na rua, nem em casa, nem em lado algum.

Teresa ia muito a excursões organizadas pela igreja, pela junta de freguesiaou algum particular. Visitavam praias, santuários, terras com coisas bonitas para se ver. As pessoas levavam as suas merendas, conviviam e dançavam entre as visitas que faziam a esses locais. Preparava-se um cesto com muita comida, que a avó Júlia se encarregava de fazer o melhor que sabia. Bolos de bacalhau, um tacho de arroz pardo, um frango assado no forno, um pedaço de lombo assado no forno com batatas assadas, bolo caseiro tipo pão de ló, um pouco de arroz doce, fruta de toda a espécie que em casa de Teresa nunca faltava. Teresa dizia sempre à Graça:
- "Deixa vir a menina comigo, ela ia gostar, diz ao António..."
- "Minha mãe, já sabe que o pai  não vai deixar ir. Ele gosta dos filhos por perto.Vá lá descansada que à noite, ela vai dormir com a avó Júlia para ela não ficar sozinha."

Antonio não deixava os filhos ir a lado nenhum. Mesmo nas excursões da catequese, Isabel nunca ia. Com os olhos muito tristes, dizia adeus à avó e a toda a gente que num sábado qualquer, muito cedo, partiam na camioneta do largo da capela, para regressar no domingo já de madrugada. Isabel gostava muito de dormir com Júlia. O colo dela era quente, e antes de irem para a cama a bisavó fazia-lhe sempre bife, ovo estrelado com batatas fritas, uma refeição de luxo.

No Domingo da chegada, Isabel não tinha sono. Muito aconchegada na cama com Júlia ouvia o bater do relógio de parede na sala de Teresa, e esperava ansiosa a chegada dos avós e do Nélito.

Adorava dar volta ao cesto do farnel, que quase sempre trazia restos e alguma lembrança. A avó nunca se esquecia de Isabel e do João. Nunca faltava um folar vindo de uma qualquer romaria onde tivessem passado.
Isabel sonhava que um dia ainda ia sair dali numa camioneta daquelas, para passear e se divertir. E dormir a noite na camioneta ou camas improvisadas devia ser engraçado.

Será que algum dia iria ? Ela tinha a certeza que não, mas isso não a proíbia de sonhar.

1 comentário:

Anónimo disse...

Tudo muito bonito de se ler!
De facto cada história é uma "história". Parabéns à autora...