Enquanto Graça não regressava a casa, vinda do hospital, muito triste com a ausência da mãe, Isabel dividia os seus dias indo com o avô para a fábrica, ou indo com a avó para a praça, conforme fosse da vontade deles.
Todos os dias a avó Olinda tinha o mesmo ritual. Chegada da praça, já depois do almoço do avô, poisava as suas coisas - alguidares, balde, saco da merenda e xaile -, vestia umas roupas ainda mais velhas e negras, e ia para o Serrado, onde semeava e plantava alfaces, nabos, nabiças, couves de várias espécies, feijão verde e ervilhas, salsa e hortelã, além das ubíquas batatas. Fazia grandes montes destes produtos, e com um carro-de-mão e uma trouxa à cabeça, trazia diariamente para casa os legumes para os lavar e arrumar numa ordem já estabelecida. Recolhia apenas a quantidade de produtos hortícolas que achava necessários para a venda do dia seguinte: raminhos de salsa e hortelã para um lado, a alface limpa de folhas secas e velhas com o caule cortado, num outro monte, o feijão verde todo separado de folhas e ramos, os nabos bem lavados com raízes cortadas à faca, e as nabiças bem armadas e atadas em molhos que resplandeciam.
Feito este trabalho, o dia entrava pela noite, faltando montar o carrego, de forma ordenada e vistosa, de maneira a embelezar a carga, cuja base era um alguidar ou um cesto arranjado para o efeito - o que era necessário é quem de manhã, as senhoras encontrassem na praça os legumes com ar fresco e viçoso.
Isabel observava este ritual com muito interesse. A avó era uma mulher de poucas palavras, muito séria, contida, sisuda, praticamente não falava com Isabel. Ia todos os dias à missa, na terra ou na cidade, depois da venda na praça, e rezava muitas vezes. Por vezes, levava Isabel consigo para rezar o terço. Quando trabalhava no Serrado ou em casa a preparar as comidas dos porcos e galinhas, a lavar a roupa do avô, ou a preparar os legumes para vender, costumava cantar cânticos religiosos, num tom que muitas vezes perturbava os ouvidos de Isabel.
Gostava mais de a sentir em silêncio. Quando ela cantava, mais tarde acontecia sempre algo desastroso, mesmo que fosse só a forma como recebia o avô no final do dia: "Olha como vens… parece impossível…" E o avô respondia: "Lá está ela aos coices..."
A avó Olinda não perdia muito tempo em casa com as lavagens de roupa, a passar a ferro ou a cozinhar, ou mesmo a arrumar a casa, mas aquilo que fazia era muito bem feito. Tinha muito orgulho nos seus molhos de grelos e nas suas alfaces criadas sem químicos ou detritos dos animais. Do preparo das terras e cultivo de legumes para venda, ela percebia e percebia muito.
A avó Olinda fazia as suas sementeiras com a ajuda de Francisco, que baldeava a terra com uma enxada como se esta fosse um tractor. Depois da labuta das cargas, era sempre tarde quando recolhia à cozinha para preparar alguma coisa para o jantar. E, por outro lado, tinha de se deitar cedo, porque o dia seguinte começava, por regra, de madrugada.
Nos dias em que Isabel ia com ela, tinha de se levantar ainda de noite. A avó levava as cargas, uma de cada vez para a paragem da camioneta, e, chegando esta, as ditas eram arrumadas no cimo da camioneta até chegar ao destino. A Isabel nem conseguia abrir bem os olhos com o sono que tinha, e não conseguia ver nada do caminho por onde ia passando, pela noite cerrada que teimava em não dar lugar ao amanhecer.
A certa altura, Isabel encontrava-se no meio de muitas mulheres, não entendendo o que diziam, couves e alfaces por todo o lado, e vários outros legumes, alguns que a Isabel nunca tinha visto, muito menos cheirado ou comido. Olinda sentava-a num canto, de uma forma que a sua cabeça quase não chegava ao nível do balcão de pedra, onde estavam arrumados os legumes para venda. Ela gostava de ouvir as vendedoras a apregoar os seus produtos. Riam, riam alto e comentavam as senhoras que passavam e, torcendo o nariz ao pregão, não lhes compravam nada.
A avó não falava muito. De vez em quando, perguntavam-lhe quem era a miúda e Olinda explicava ou não. "Coitada, tem de vir tão cedo consigo para aqui... tens fome pequenita, toma pão, a tua mãe daí a nada já volta….”. E o pão ali comido era doce, melhor do que algum outro que Isabel já tivesse comido.
Um dia na praça, a avó perguntou a Isabel se ela queria alguma coisa, o que não era habitual, e ela ganhou coragem e disse: "Uma boneca". A avó pediu às mulheres que tomassem conta de Isabel e ausentou-se por um tempo. Durante a ausência da avó, a Isabel fez uma pequena prospecção de todas as coisas que estavam escondidas por baixo da banca de venda, já que, com a avó, nunca saía do seu canto. Abriu e fechou sacos e cheirou uma série de tachos com comida. Fazia isto sem as vendedoras darem conta e continuava. Em cima de um fogareiro com as brasas apagadas, uma cafeteira de esmalte azul escuro um pouco esmurrada, escondia algo dentro. Isabel cheirou e até se arrepiou, aquilo não era café, mas sim vinho, de que conhecia bem o cheiro, dos homens da barbearia do canto.
De manhã, era um hábito as pessoas comerem e darem às crianças "sopas de cavalo cansado", mas os pais de Isabel nunca deram isso aos filhos, e só quando António estava em casa mandava um dos filhos à loja comprar algum vinho para a refeição, coisa pouca, para não azedar.
Isabel achou engraçado, porque as mulheres fingiam que comiam a sua merenda ou almoço improvisado com café, como diziam, mas o que bebiam era vinho, por isso lhe ofereciam pão, uma laranja ou uma maçã, mas nunca uma caneca de café. Sim, porque elas bebiam o vinho numa caneca, como se fosse café. Assim a venda corria bem mais animada.
Isabel conhecia o segredo, mas não contou nada avó. Afinal ela nunca bebia daquele café, e também não lhe podia contar que na sua ausência tinha andado a bisbilhotar. Riu-se em silêncio, e, com um sorriso matreiro, aguardou a chegada da avó com a sua boneca nova.
Claro que não era a boneca dos sonhos de Isabel, nem parecia um bebé, mas tinha um vestido de chita, parecia uma menina como ela. Tinha um cheiro a cartão envernizado muito brilhante, e os seus olhos e boca pintados pareciam querer falar e sorrir para Isabel. Quando a avó chegou, estendeu-lhe a mão e deu-lhe para as suas mãos pequenas a boneca. Isabel queria que este momento nunca mais acabasse. Sentiu uma felicidade enorme. Não ia ter mais sono de manhã, e naquele momento, todo o barulho e confusão da praça pareciam ter acabado.
À vinda para casa, Isabel vinha tão feliz que nem sentia sono nem cansaço, por ter passado tanto tempo sentada no mocho da praça. Tinha muito que fazer com a sua boneca e nada melhor que dar-lhe um bom banho, para depois a pôr a dormir uma bela sesta. Preparou o banho e lavou muito bem a boneca, mas quando a começou a secar, bocados de tinta que armavam os pés da boneca começaram a sair. A sua boneca depois do banho ficou mole e com os pés meio desfeitos.
Quando a avó viu aquilo, só disse que ela não merecia mais nada, que estragava tudo, e muitas outras coisas que a Isabel, triste pelo sucedido, não conseguiu ouvir. Mesmo assim continuou a brincar com a boneca, que agora estava doente, como a mãe, e pediu ao avô que a levasse com ele para a fábrica porquede manhã tinha sempre muito sono para ir com a avó.
O avô Chico que sabia que a sua mulher não tinha muita paciência para crianças, e disse que sim à neta.
Graça não devia tardar e com certeza ia dar um jeito e pôr como nova a sua boneca, foi o que pensou Isabel. Isabel continuou por mais alguns dias a ir com o avô para a fábrica e a vê-lo ao almoço a esfregar a broa no azeite, sem ela o poder fazer, por ser mal feito, como ele dizia. Mas Isabel divertia-se com isso em silêncio. À noite dormia com o pai, mas agora bem agarrada à sua boneca de cartão, que para ela continuava com o mesmo encanto.
Cada dia ela sonhava que seria nesse dia que a mãe voltaria para casa. Ela sabia que a mãe sabia tratar tudo. Tinha muitas saudades da sua mãe, e como se fosse ela, agarrava a boneca com força até adormecer.
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