sábado, 27 de fevereiro de 2010

A comunhão e os caracois

Como acontecia em famílias cristãs praticantes, Isabel andou na catequese.

Todos os domingos, depois da Missa, sentada num banco corrido da igreja, Isabel  tentava aprender as orações que a catequista ensinava ao grupo de meninas que nesse ano iam fazer a comunhão solene.

A primeira comunhão já estava feita.

Depois de ter decorado algumas orações primárias, e de ter aprendido que matar, roubar, ter maus pensamentos, dizer palavras feias, faltar à missa e mais uma série de coisas eram pecado, aprendeu como devia colocar a língua para receber a sagrada hóstia, e foi assim que fez a primeira comunhão.

Também aprendeu que tinha que dizer os seus pecados ao senhor padre, o que lhe causava um certo mau estar. Que pecados teria ela para dizer?

Aquele homem vestido de preto da cabeça aos pés representava Deus na terra, e isso assustava-a. Sentia que ele conseguia ler tudo o que ia dentro dela, como se ela fosse transparente.

Na altura da confissão, teria de inventar alguns pecados, sempre os mesmos, porque não sabia o que dizer. Isabel tinha a certeza de que se ela fosse pecadora, em casa dela todos eram pecadores. A mãe e o pai, raras vezes iam à missa e andavam sempre discutir, e não se lembrava de os ver ir à confissão. A avó Olinda andava sempre na missa e a confessar-se, mas isso também não admirava porque parecia andar sempre de mal com tudo.

Para a comunhão solene, tinha que saber muito mais coisas e orações muito complicadas. O Credo, a Confissão e  o Acto de Contrição, as Bem-Aventuranças,  a Salvé-Rainha e um conjunto de outras orações, que bem sabidas fariam dela uma menina preparada.

Usaria um vestido comprido e um véu na cabeça, tudo alugado como era usual nessa altura, um terço e um missal nas mãos que iriam cobertas com umas luvas de renda, e um saquinho com um lenço bordado, tudo branco imaculado.

A mãe de Isabel pensou que para esta cerimónia o melhor era melhorar o penteado de Isabel. Assim, em vez de cortar o cabelo no barbeiro do canto, levou-a a um cabeleireiro à cidade para fazer uns caracóis, técnica que se chamava de permanente com ferros.

Chegada ao cabelereiro, a mãe de Isabel disse às senhoras que queria a cabeça da menina com caracóis. Começaram de volta da cabeça de Isabel. Mexe aqui, corta dacolá, arrepela daqui, puxa dacolá. Líquidos com um cheiro esquisito, e uns ferros pesados começaram a pesar-lhe na cabeça. Depressa começou a sentir que queria sair dali depressa. Mal conseguia segurar a cabeça com o peso dos ferros. A certa altura, com a cabeça cheia daquelas pinças pesadas, quentes e a cheirar a amoníaco, a mãe disse:
- “Ficas aí, que vou à rua tratar de um assunto e já venho.”


Isabel ficou sozinha na sala. Ficou ali tanto tempo que parecia que todos se tinham esquecido dela. Passou a hora de almoço, e ela já não sabia se sentia fome ou medo de estar sozinha e esquecida. Doía-lhe a barriga de fome. A cabeça também lhe doía e o medo começou a tomar conta dela.

Chamava pelas senhoras e nada. A mãe também não aparecia e ela mais do que nunca desejou estar na barbearia do seu canto, a cortar a marrafa e a aparar o  cabelo a direito. Tinha a cara a ferver, vermelha, parecia que a estavam a cozer.

Queria fugir dali, e quanto mais depressa melhor.
Quando apareceram as senhoras, a fome já tinha passado. Estava vermelha como um pimento, e aflita com medo da  mãe não aparecer mais.
Porque será que a mãe a tinha deixado ali sozinha? Não conhecia aquele sítio nem aquelas mulheres. Não sabia onde estava, e ninguém lhe explicava nada.

Isabel tratava muito melhor as suas bonecas, e estava farta daquilo tudo, se pudesse não queria aqueles caracóis para nada.

Ir ao cabeleireiro era muito difícil, pior do que ir ao médico.
Depois de vários outros puxões, é que apareceu a mãe. Olhou para Isabel, e disse-lhe que ela estava linda, e que era preciso despacharem-se porque o comboio não ia esperar por elas. Não disse onde tinha ido, nem porque demorara tanto. Pagou a conta e saíram a correr.

Isabel bem se queixou do tempo que esteve só, do cheiro, do peso na cabeça, da fome, mas a mãe o que queria era não perder o comboio. Isabel com as pernas dormentes por tanto tempo ter estado sentada com aquele peso na cabeça, mexia-se o mais que podia.

Tinham muito para fazer em casa, antes da chegada do pai à noite.
Isabel, à hora de deitar, ainda tinha a cabeça quente e a latejar.

No dia em que vestiu o  vestido comprido de renda alugado, e colocou na cabeça a coroa que entretanto tinha servido para uma noiva casar, pensou que Deus com certeza já lhe tinha perdoado algum pecado  inventado ou não confessado, porque aqueles caracóis que lhe saíam naquele dia pelo rendilhado da coroa, tinham-lhe dado muitas dores de cabeça e de barriga.

É claro que Isabel não se lembra de ter havido alguma festa em casa. Não era habitual a família juntar-se para nada. No final da missa da comunhão solene, seria a procissão, com os meninos de fato e gravata e as meninas vestidas de branco, autênticos noivos em miniatura. Percorriam a aldeia em procissão, e depois era voltar para casa e tirar  o vestido.

Cada um em sua casa, teria a festa que os pais tivessem preparado para celebrar a ocasião. Para Isabel, ficaram as fotografias que o pai tirou durante a procissão. Nesse ano, o João também fez a sua comunhão solene, que por doença ainda não tinha sido feita.

Para recordar, ficou uma grande vontade de nunca mais voltar ao cabeleireiro.

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