Aquele dia...
Como em tantos outros dias, também naquele dia, quando Isabel acordou, estava sozinha. A mãe não estava em casa. Nestas ocasiões, ela esperava sempre com calma. Muitas vezes pegava num pão de bico, onde punha um pouco de marmelada e comia enquanto esperava pela mãe.
Era hábito naquela altura ir ao leite à leitaria. As pessoas que criavam vacas leiteiras em currais, depressa punham os bezerros a comer e tiravam o leite às vacas para o vender nas leitarias, ou a vizinhos e conhecidos interessados em comprar meio litro ou mais. O resto ia para as leitarias, ou era distribuido pelas leiteiras, vestidas de branco dos pés à cabeça, que iam à cidade vendê-lo de porta em porta às senhoras finas.
A mãe da Isabel ia todos os dias com um fervedor a casa de uma leiteira, comprar algum leite para consumo de sua casa. Por vezes, a mãe demorava a chegar a casa, ou porque encontrava alguém com quem conversar, “desenferrujar a língua”, como dizia o pai, ou porque ia a casa da avó materna, ou fosse pelo que fosse. De facto, Isabel também achava que, de vez em quando, a mãe demorava demais a regressar a casa, mas esperava pacientemente, indo arrumando alguma coisa a que conseguisse dar um jeito.
Naquele dia, o seu coração bateu mais depressa que o habitual. À porta, o pai gritou:
-"Graça onde estás?" E olhando para Isabel que lhe apareceu à frente como um relâmpago, perguntou:
-"A tua mãe, onde está a tua mãe?"
Isabel ficou tão aflita sem saber o que responder que, sem pensar ,disse logo que a mãe tinha ido à loja e não demorava nada. Mas a avó da Isabel apareceu e apressou-se a dizer, que ela já tinha saído havia muito tempo, que era sempre assim e mais isto e aquilo, coisas que a Isabel já não conseguia ouvir pois o barulho do bater do seu coração lhe ensurdecia os ouvidos. Ela já conhecia muito bem o pai para saber que não ia ser fácil sobreviver àquele dia, pior sendo ainda pelo que a avó estava a dizer.
Encolhida a um canto qualquer do corredor de cimento frio da casa, pedia a todos os santos e anjos que trouxessem a mãe depressa. O pai estava cada vez mais furioso e só berrava. António girava de um lado para o outro, ouvindo o que a avó atrás dele lhe ia buzinando aos ouvidos, enquanto a roupa começou a saltar do gavetão da cómoda simples, do quarto dele e da Graça. Isabel teve a certeza que o mundo ia acabar ali, para todos, nesse dia. Melhor sorte teria o irmão, que em casa da mestra estava livre daquilo tudo.
Quando a mãe chegou e o pai sentiu os seus passos no terraço do quintal, chegou-se à porta de casa e mesmo ali diante dos olhos de Isabel deu tamanha bofetada à mãe que o leite e o fervedor e a mãe de Isabel entraram num turbilhão que tudo fez cair ao chão.
Isabel só gritava “não batas mais na minha mãe... não batas mais na minha mãe...”. Mas ele não parava de bater e arrastou-a para cima da cama, e como estava, em cuecas e camisola interior brancas, porque como as camisas, a roupa interior do pai também era toda branca, bateu na mãe até lhe apetecer. Estava branco de raiva. Sim, aquilo só podia ser raiva; queria porque queria, que a mulher estivesse em casa, sempre, para que como naquele dia, a qualquer hora que precisasse dela, ela estivesse ali, em casa, onde era o seu lugar.
Naquele dia, António tinha regressado a casa de manhã, porque, dizia ele, fora de si, tinha que juntar roupa numa mala para ir trabalhar para longe, a mando da empresa, e a Graça tinha de estar em casa para lhe fazer a mala, como era o seu dever. Isabel implorava para que ele soltasse a mãe e como isso não acontecia, fugiu a correr lavada em lágrimas para casa da avó Teresa.
-"Avó, tens de ir a minha casa. O meu pai vai matar a minha mãe e a minha avó Olinda está lá a ver e não se importa, não faz nada..."
Isabel chorou desalmadamente, angustiada com o que tinha presenciado, pensou tudo e mais alguma coisa, inclusivé que o melhor era o pai ir para o tal sítio trabalhar e nunca mais voltar. A avó acalmou-a, dizendo que não ia lá a casa e que tudo aquilo não era nada e ia passar. Isabel estava cansada daquelas cenas de violência, e naquele momento odiava o pai. Queria-o bem longe. No coração de Isabel ficou um medo sem fim do pai, uma mãe que a revoltava, por ser refilona, e uma vontade sem limites de fugir e nunca mais aparecer. Ter aquele pai e aquela mãe era muito doloroso. Não era a primeira vez que, por causa deles, ela pensava que seria preferível morrer, fugir dali. Por isso, o seu olhar andava sempre sombrio, o seu coração apertado e nunca tinha vontade de se rir.
Quando regressou a casa, arrastando como de costume os pés pelas pedras da valeta que, naquele dia, não lhe apeteceu contar, a mãe estava na cama. Chorava. Chorava muito e dizia que queria morrer.
Isabel não conseguiu acalmá-la, e ficou cheia de medo que a mãe morresse. Que seria dela se a mãe, como dizia constantemente, se atirasse ao poço do quintal da avó Olinda. Sobre esta, a mãe dizia coisas que Isabel não entendia, mas percebia que eram coisas ditas com mágoa. Graça devia estar muito mal. O corpo dela devia estar a doer muito, comparando com uma ou outra palmada que a mãe lhe dava (o pai não batia em Isabel, só no irmão, por ele não chegar a horas às refeições). Isabel temeu por todos os dias que se seguiriam naquela casa.
Quando se deitou à noite não houve jantar, Isabel contou, como conseguiu, ao irmão o sucedido, e ambos se deitaram em silêncio. Da sua cama Isabel sentia ainda a mãe a chorar. E assim adormeceu.
Ela sabia que a partir dali nunca mais nada seria igual naquela casa.
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