terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Imaginação


Isabel, João e os pais viviam numa casa da avó Olinda. Todos os meses, António pagava uma renda à sua mãe.



De todas as divisões, além da casa de banho inventada pelo pai, em frente à cozinha que não tinha janela e era escura, a divisão que Isabel menos gostava era do quarto dela. Ficava no corredor em frente ao do João, entre a sala e a casa de banho. Esta tinha sido uma divisão onde o pai trabalhava a consertar os rádios avariados dos amigos e vizinhos que a ele recorriam, por conhecerem essa sua faceta. Era também nessa divisão que a mãe de Isabel escutava as conversas que António tinha com Olinda antes de entrar em casa, e que eram a maioria das vezes, motivo de discórdias e violência entre ele e Graça.

Definitivamente, Isabel não achava graça nenhuma ao seu quarto. Tinha um pequeno buraco rectangular, uma janela que dava para a sala, a cama de ferro azul-fosco já com falta de tinta, uma mesa redonda pequena de um pé só, que abanava por todos os lados, e um guarda-vestidos velho e feio, sem espelho, pintados de cor de vinho, sem brilho, tudo sombrio, muito negro. Uma mesinha de cabeceira muito antiga completava o mobiliário.

Isabel sabia que aquele era o quarto possível, que os pais não podiam dar-lhe outro melhor, mas comparando com os quartos que via em casa da Zézita ou do Nuninho, onde já tinha ido com as primas brincar, sabia que o seu era feio. Mas nunca falou disso a ninguém. Imaginava que na sua sala, atrás da porta, existia uma escada que ela adorava subir e descer, e por cima uma outra casa linda com muita cor e luz, onde tudo estava muito ordenado, em divisões que no seu imaginário seriam as ideais para ela e para a sua família. Ninguém a proibia de imaginar e acreditar que isso era verdade.

Muitas vezes dizia para as suas bonecas - “A mãe vai lá cima buscar a papinha” - e escondia-se atrás da porta por um tempo, aparecendo depois à sua boneca – “Viste, não demorei nada…”. Chegou mesmo a contar e a falar com muito entusiasmo, desta parte imaginária da sua casa a algumas meninas da sua escola.
À Zézita não, pois ela sabia como era a sua casa. Podia espreitar pela passagem da figueira e ver que a casa de Isabel não tinha nenhum andar superior como a dela. Mas Isabel queria acreditar nisso até porque a sua paixão, subir e descer escadas, era tão forte que não podia deixar de imaginar isso nas suas brincadeiras solitárias.

Isabel imaginava muitas coisas, muitas vezes. O que ela adorava eram os dias em que a mãe, resolvia, por qualquer motivo, dar uma volta geral à casa, limpar móveis e mudar a cera do chão, e para tal precisava de ajuda. Falava a uma senhora que a ia ajudar, pelo menos pela Páscoa, e que sempre que lá ia, levava um bebé que Isabel ficava encarregue de cuidar. A senhora teve pelo menos oito filhos, o que significa que ela encheu várias vezes Isabel de alegria.

Nesse dia, a criança não tinha descanso. Isabel dava-lhe voltas a toda a hora, por tudo e por nada. Mudava-lhe a fralda constantemente, dava-lhe papa, água, adormecia-o ao colo, para depois o acordar e voltar a adormecer. Gostava de lhe pegar ao colo e de o deitar numa caminha improvisada por Graça para o efeito, para ver como dormia, mas também gostava de o acalmar e depois de o pôr a chorar. De vez em quando, a mãe de Isabel gritava a perguntar o que se passava com a criança. Isabel dizia sempre que estava tudo bem e dava um pouco de descanso ao bebé.

Sem maldade e porque gostava muito de fazer de mãe, ela fazia muitas malandrices aos bebés que passaram pelas suas mãos. Fazia mal por tanto bem querer. Mas aprendeu muito com esses dias e nunca ficou cansada. Ao final do dia, era com os olhos tristes que via o bebé partir com a mãe.

Com certeza nesse dia o bebé dormiria bem, porque estava cansado das voltas e reviravoltas que levara de Isabel, e esta imaginava que um dia teria um bebé a sério, só dela, e teria um quarto bonito para o deitar.

1 comentário:

Anónimo disse...

Não consigo ler estes textos tão simples, mas tão reais, como por ex. esta parte" Muitas vezes dizia para as suas bonecas, “a mãe vai lá cima buscar a papinha”, e escondia-se atrás da porta um pedacito de tempo, aparecendo depois á sua boneca …” vês, não demorei…”.Chegou mesmo a contar e a falar com muito entusiasmo, desta parte imaginária da sua casa a algumas meninas da sua escola."
sem que uma persistente lágrima esteja aqui no canto dos olhos.
Deixo um beijo à autora.