sábado, 27 de fevereiro de 2010

Os tamancos

Desde que a avó Teresa vivia na aldeia, Isabel ia muitas vezes visitá-la e passava longas tardes em sua casa. Um dia não demorou como era costume, e chegou a casa aos gritos.


Depois de muito teimar, Isabel conseguiu que a mãe lhe comprasse na mercearia, uns tamancos que lhe pareciam iguais aos das varinas da Nazaré. Eram altos, como os sapatos altos da tia e da professora. Com eles nos pés ficava muito mais alta.
Um dia, depois de muito insistir, conseguiu sair de casa para visitar a avó, com os tamancos nos pés.
Ia à rua de sapatos altos. Toda vaidosa, lá foi ela estrada abaixo, mas percorrendo o caminho pela valeta.

A mãe dizia-lhe sempre para ir pela borda da estrada, e ela ia tão pela borda que ia pela valeta, onde corria muitas vezes água da chuva, ou água saída de  casas, o que tornava as pedras da valeta ainda mais escorregadias.

De facto ir pela valeta era divertido, mas Isabel veio a reconhecer mais tarde que era também muito mais perigoso. Naquele dia foi caminhando, marcando o passo com agilidade, ora um ora outro pé, até que aquela dança deu numa queda. Bateu com a cabeça numa pedra e pronto, partiu a cabeça. Sentiu uma dor e mal pôs a mão na cabeça, viu que estava cheia de sangue a correr-lhe pela cara. Tentaram ajudá-la mas ela não respondeu. Não ouvia o que lhe diziam.
Vendo todo aquele sangue, com os seus tamancos na mão, correu e gritou pela mãe como nunca, estrada acima. Pensava que ia morrer. Não se lembra de ter feito aquele caminho tão depressa.

Atravessou o canto a gritar tanto, que a mãe já vinha ao seu alcance quando ela entrou no terraço do quintal da avó. Ralhou com ela, mas acalmou a Isabel, que em vez de gritar passou apenas a chorar, que se lembrou, entretanto, que à noite tinha que prestar contas ao pai.

Tinha de ir levar pontos na cabeça, porque o corte era grande, foi o que disse a mãe. A mãe foi com ela à farmácia onde o empregado de bata branca a levou para uma sala que cheirava a hospitais. Deu-lhe uma injecção, limpou e desinfectou o golpe e pôs-lhe três agrafos. Aquilo doía muito e Isabel estava dorida.

À noite,  a mãe explicou ao pai o sucedido.


- “Onde estão os tamancos?” - perguntou ele, com uma voz autoritária.

Os tamancos de salto alto com que Isabel tanto gostava de andar, foram fazer companhia ao triciclo no tecto do casarão onde o avó trabalhava, pendurados tão alto que nem se lhes conseguia ver a cor.

Aconchego na cama, um carinho na face ou na cabeça, é que a Isabel nunca teve, muito menos nesse dia. À noite deitou-se com o aviso de que o seu galo cantaria à meia-noite, mais nada
.
 Isabel era uma menina triste. Assim adormeceu, com a visão dos tamancos perdidos  pendurados no tecto do casarão. E um latejar insistente na cabeça.

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