terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A avó Teresa

Isabel nutria uma simpatia especial pela avó Teresa.
Não sabia ler nem escrever e, como tal, dos vários ofícios que teve, de nenhum tirou particular proveito. Ao longo da vida foi padeira, merceeira, peixeira, criou porcos e galinhas, vendeu fruta, mas em todas as actividades em que se metia acabava por sair sempre a perder.
Decorar toda a escrita do negócio, organizá-la em papéis, ter de cabeça todos os nomes dos clientes, dívidas recentes e calotes, dívidas a fornecedores e material já pago, não era tarefa fácil porque o avô Orlando, que era marceneiro de obra fina na cidade, não metia prego nos negócios de Teresa fosse ele qual fosse. A avó Teresa, assim, com o seu coração mole e doce,  ia servindo e alimentando as pessoas, andando sempre de algibeira vazia. Tinha um tio, o Manuel - Nelito, como todos lhe chamavam -, quase à idade do João, com quem este gostava muito de brincar.


A primeira casa onde Isabel se lembra de ver os dois brincar, porque a avó Teresa viveu em várias terras e em casas diferentes, foi numa quinta com um riacho e uma ponte de madeira, que dava ao sítio um ar exótico, pouco vulgar. Era a quinta do Salabardo, com uma vegetação densa, árvores de fruta variada, lagar de azeite e uma adega, tudo de fazer arregalar os olhos de beleza e inesperada abundância. Teresa era uma espécie de guardiã da quinta. Dentro de casa, ao fundo de uma sala havia um piano já velho, sempre cheio de maçãs vermelhas e cheirosas, mesmo como a Isabel gostava. A avó Júlia, mãe de Teresa e bisavó de Isabel, mantinha a casa em ordem e na cozinha havia sempre um cozinhado acabado de fazer. O João adorava passar dias em casa desta avó. Ele e o Nelito saíam bem cedo de casa, com uma boa merenda num saco que a avó Júlia preparava para ambos, e os dois iam pela quinta sem destino à procura de aventuras, regressando a casa só ao final da tarde.

Enquanto o João delirava com estes passeios, Isabel gritava sempre agarrada às pernas da mãe para que esta não a deixasse ali, naquela casa grande. Ficava em sofrimento e não havia quem a deslocasse dessa condição. Mas se era tão bem tratada e se ali nada lhe faltava, porque não queria Isabel deixar a mãe?

Isabel era um pouco a mãe de Graça, e tinha a certeza de que, de algum modo, esta precisava da sua protecção. Nunca foi possível convencer Isabel a ficar na quinta, nem encontrar uma razão para tamanha teimosia.

Um dia, a mãe de Isabel teve de ser internada para tratar um problema de saúde. Era necessário que alguém cuidasse dos meninos. Ficou combinado que, durante a ausência da mãe, o João iria para o Salabardo e a Isabel ficaria com o avô Francisco e avó Olinda. Ficariam ali até a mãe chegar. Ela detestava o canto, mas queria esperar ali pela sua mãe.

O avô Chico era simpático, chamava buiça aos miúdos. As suas mãos, apesar de grossas, ásperas e enormes, eram meigas e levavam Isabel pela mão à rua ou à missa ao domingo. Gostava dele assim, e além disso, por mais que berrasse com a avó Olinda quando chegava um bocado mais alegre a casa, um efeito natural das visitas a todas as tabernas da aldeia que apanhava no caminho da fábrica até casa, nunca lhe tocou, nem atirou pratos ou panelas ao chão, ainda que as panelas da avó por estarem sempre ao lume não dessem para atirar ao chão.

Isabel tomava atenção a tudo o que os avós diziam.
O avô Chico trabalhava numa fábrica onde fazia moldes de madeira, à volta dos quais outros trabalhadores trabalhavam sabiamente o vime. Eram cesteiros. Isabel gostava de ir com o avô para ali. As senhoras que lá trabalhavam tratavam-na bem e com carinho. E o cheiro daquele sítio era agradável. Ela nunca o esquecerá. Com as formas mais pequenas, embrulhadas em panos fazendo de xailes ou mantas, ela passava as horas a brincar às bonecas, até que tocava o sino para a saída dos trabalhadores.
Chegada a casa, a refeição era divertida. A avó Olinda, chegada da praça, fazia uma sopa de couves, nabos e batatas do quintal, e nas brasas assava uma posta de bacalhau. Esta era toda partidinha aos bocadinhos, temperada com alho, azeite e vinagre. De vez em quando a Isabel molhava a broa, feita pela avó, no azeite que transbordava do prato, ao que o avô Francisco dizia sempre: "Não se molha aí, que o prato não é só teu, é de todos".

A Isabel recolhia a mão e não repetia o gesto. Porém, de quando em vez, já esquecido do ensinamento e levado pelo apetite, o avô pegava num naco de broa e esfregava no azeite. Comia até ficar com os beiços cheios de azeite, deixando o prato cheio de migalhas. Isabel como que entendia e sorria para dentro.

À noite, quando o pai regressava do trabalho, ia para casa dela, que era logo ao lado e dormia aconchegada, na cama com o António. Recorda que nestes dias o pai andava mais calmo e algo perturbado. Também ele sentia falta da Graça. A casa assim vazia não tinha jeito.

Isabel pensava que, talvez, quando a mãe regressasse tudo pudesse ser diferente. Com esse sonho, vestida com uma camisa de dormir de flanela que a mãe lhe fizera, adormecia encostada ao calor do corpo do pai.

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