segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

De cântara à cabeça

Eram muitas as tardes e as noites que a mãe de Isabel passava consecutivamente a costurar ou a tricotar, um casaco, uma camisola, vestidos ou calças, para vestir os filhos numa data especial.

Isto acontecia muitas vezes na altura do Natal. Para irem à missa do Menino Jesus, a mãe tricotava sem parar, camisolas e muitas outras roupas que nesse dia deixariam o João e a Isabel todos janotas e agasalhados.

Isabel recorda que na cozinha negra e velha, onde por vezes o pai, às horas de refeição, ralhava muito com a mãe, atirando pratos e panelas inteiras com comida para o chão, e em que ela, aflita, tinha tudo menos vontade de permanecer, nos dias e noites de longos serões em que a mãe tricotava, era muito bom estar. Ela brincava com o irmão a qualquer coisa, nem que fosse a fazer de comboios com os mochos deitados a arrastar pelo chão. Nesses dias, por falta de tempo, não havia jantar, mas fome, também não existia. Um pedaço de pão de centeio e bocados desfiados de bacalhau, matavam a fome à Isabel e ao irmão, que tinham tudo menos vontade de se ir deitar. A água fresca da cântara matava a sede. Não se lembra de como se ia deitar, mas, de manhã, na borda da cama lá estava uma camisola ou um vestido, acabado, rematado de linhas e pontas, passado e engomado, pronto para vestir. Cheirava até a roupa nova, ainda que muitas vezes, o fio de lã ou tecidos usados tivessem resultado de alguma peça usada.

Era normal duas camisolas velhas darem uma só, ainda mais bonita do que as anteriores.

Estes serões só aconteciam quando o pai de Isabel estava ausente, a trabalhar longe, regressando a casa só no final de semana. Eram dias mais calmos, em que Isabel muitas vezes perguntava à mãe porque é que ela não se calava quando ele começava a falar muito e alto. Chegava mesmo a pedir, a suplicar - “Mãe, deixe o pai falar, não ralhe com ele...” -,  ao que ela respondia sempre:


- “Não, que ele não tem razão, a tua avó é que tem a culpa, e ele, em vez de chegar e vir logo para casa, passa ali em casa dela e vem de lá com os ouvidos cheios".

Isabel não percebia porquê, mas tinha a certeza de que aquela guerra só teria fim se fossem todos embora para muito longe. Naquela cozinha, de vez em quando, tirando as noites de tricot, Isabel sentia-se a menina mais infeliz do mundo. Durante as refeições, levantava-se do seu mocho e agarrada ao rosto do pai implorava:
- “Já chega pai, não bata mais na minha mãe... pronto mãe, fique calada… já chega…", e chorava de angústia. Foram anos de sofrimento, que ninguém sabia ou desconfiava.

Isabel ia crescendo cheia de medo, aflita e muito preocupada com o comportamento dos pais, sem tempo para viver a sua idade de menina. Sem saber disso, este seria um fardo que iria transformar toda a sua vida.

Da cozinha ficou-lhe a imagem da cântara de barro que havia no poial da cozinha, com um prato e um púcaro, sempre com água fresca para beber. Ao lado, um alguidar para lavar a loiça, onde ela, muitas vezes, em cima de um mocho, com um farrapo e um pedaço de sabão azul, lavava a loiça de uma refeição. A mesa tinha quatro mochos arrumados por baixo e um armário antigo com alguns utensílios de cozinham, e nada mais. Debaixo da chaminé do borralho, um fogão que alguém da empresa do pai tinha deitado fora, e que ele recuperara com muito engenho.
A janela era pequena e funda sem deixar ver para fora, nem entrar sol ou luz para dentro. No ferro que segurava a cantareira do borralho, a Isabel  deu voltas, muitas vezes, até quase cair no chão de tonta.
Adorava fazer aquilo, ainda que a mãe a repreendesse.
Também gostava de pegar na sua pequena cântara de barro, deitada à cabeça numa rodilha muito bem feita. Tamancos nos pés que percorriam uma distância considerável como se Isabel fosse uma mulher, lá ia ela, feliz, à fonte. De regresso, em meneios de anca e tronco para segurar a cântara em equilíbrio na cabeça, vinha contente. Gostava de correr este risco.

Parecia uma pessoa adulta.
No seu íntimo gostava de fazer aquilo, porque o pai dizia sempre:
- "A Isabel um dia, se estudar, vai ser professora primária, senão vai para a costura. Não a quero pela rua a brincar, nem a ir à fonte, muito menos de tamancos e de cântara à cabeça”.

Isabel gostava de pisar o risco. Era a sua guerra silenciosa. Contra o pai.

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