Isabel já tinha algumas amigas na escola, mas vivia momentos de aflição, porque lhe aconteciam situações que ela não conseguia gerir nem controlar.
Como se não bastasse a dificuldade de aprender a tabuada, e os erros que fazia nos ditados por causa da troca constante do “nh” pelo “lh”, começou a ser chantageada por uma miúda reguila e impertinente, que a fazia viver em constante sobressalto.
Todos os dias de manhã Isabel levava para o lanche do recreio, um pão de bico com marmelada, que a mãe lhe preparava. Quando chegava à escola, tirava-o da sacola e colocava-o por baixo da carteira. Mas sempre que o procurava, chegada a hora da merenda da manhã, o pão já lá não estava.
Demorou tempo a descobrir, mas a certa altura a colega reguila da frente disse-lhe:
- “Se dizes à professora que te tiro e como o pão, digo-lhe que tu dizes muitas asneiras feias ” - e desatava a dizer uma enxurrada de palavrões que Isabel desconhecia, mas que deviam ser com certeza muito feias, dada a cara de raiva com que eram ditas.
Além disso, essa miúda exigia de Isabel todos os dias um tostão ou dois, caso contrário o rol de asneiras era ainda maior e mais grave, e com testemunhas sempre inventadas.
Isabel, no início, cumpria o que a colega a intimidava a fazer. Como tinha fome, começou por ir quase todos os dias comprar um pão para merendar no recreio, numa pequena mercearia que havia ao lado da escola. Em casa convencia a mãe a dar-lhe um tostão, coisa que a mãe de vez em quando fazia, mas que um certo dia se negou a fazer. Queria explicações. Graça queria saber para que queria a filha, todos os dias, um tostão ou dois. Isabel, nesse dia, foi para a escola a chorar, cheia de medo.
Um dia, a senhora da mercearia encontrou a Graça e disse-lhe:
- “Tenho na mercearia uma pequena conta de pão que a sua menina lá vai buscar quase todos os dias, ela diz sempre que a mãe depois paga, mas como a Graça não tem passado, estou a dizer-lho agora”.
Graça ouviu, estupefacta. Todos os dias enviava uma merenda para a Isabel, e pensou que algo se devia estar a passar.
No dia seguinte, a cena dos tostões repetiu-se e Isabel viu-se obrigada a contar à mãe o que se passava, por tanto ela insistiu em obter um esclarecimento. Graça pegou na mão da filha e foi com ela até à escola:
- “Vamos falar com a professora, que isto vai ter de se esclarecer.”
Naquele tempo, não era usual as mães irem à escola falar com os professores. Só no início e no final do ano escolar.
Pelo caminho, Isabel ia tão aflita que mal conseguia andar.
Mal chegaram à escola, Graça foi pagar a conta do pão na mercearia do lado da escola com vários pedidos de desculpas. Uma despesa que correspondia a mais de vinte pães. Ambas estavam um pouco envergonhadas com a situação.
Na rua em frente à escola, rapidamente se juntou uma pequena multidão, numa grande algazarra. Mal a professora chegou, mandou calar a miudagem e começou a conversa com a mãe de Isabel.
Graça queria ser esclarecida acerca do desaparecimento do pão da filha dentro da sala de aula, o que levou à conta na mercearia. Gostaria de saber porque precisava Isabel quase todos os dias de lhe pedir dinheiro, que não sendo muito, era o suficiente para a deixar desconfiada. Quando não lho dava, Isabel ficava muito agitada.
O grupo em redor da professora, da Graça e da filha, tentava dar palpites, dizendo cada um dizia uma coisa distinta, e, de repente, tudo começou a ficar claro.
Foi chamada a menina que estava elencada para jurar em falso, que meio envergonhada e aflita acabou por contar tudo o que sabia. Foi uma confusão tão grande que nesse dia não houve mais aulas.
A mãe da miúda que roubava o pão foi chamada à escola. Nesse dia ficou tudo finalmente esclarecido. A professora castigou quem devia ser castigado. Isabel não sabia, nem conhecia as asneiras referidas. Dizia-lhe a mãe que essas palavras eram sapos feios a sair da boca de quem as dizia.
Mais tarde, quando Isabel ia para casa com a mãe, a porta de casa da colega intriguista estava aberta e Isabel viu que, além de ter ido para casa puxada pelas orelhas, estava debruçada numa cadeira e levava palmadas no rabo com um cinto.
O pão de Isabel nunca mais desapareceu, nem lhe exigiram tostões, mas a manipulação das colegas continuou. Ninguém brincava com Isabel, nas rodas ao lenço, às escondidas e à apanhada, aos reis e às rainhas. Aquela menina comandava todas as outras.
Assim não era fácil andar na escola. A marmelada no pão sabia-lhe a amargo.
Preferia o pão da mercearia sem nada.
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