sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

As amigas



Isabel já tinha algumas amigas na escola, mas vivia momentos de aflição, porque lhe aconteciam situações que ela não conseguia gerir nem controlar.

Como se não bastasse a dificuldade de aprender a tabuada, e os erros que fazia nos ditados por causa da troca constante do “nh” pelo “lh”, começou a ser chantageada por uma miúda reguila e impertinente, que a fazia viver em constante sobressalto.

Todos os dias de manhã Isabel levava para o lanche do recreio, um pão de bico com marmelada, que a mãe lhe preparava. Quando chegava à escola, tirava-o da sacola e colocava-o por baixo da carteira. Mas sempre que o procurava, chegada a hora da merenda da manhã, o pão já lá não estava.

Demorou tempo a descobrir, mas a certa altura a colega reguila da frente disse-lhe:

- “Se dizes à professora que te tiro e como o pão, digo-lhe que tu dizes muitas asneiras feias ” - e desatava a dizer uma enxurrada de palavrões que Isabel desconhecia, mas que deviam ser com certeza muito feias, dada a cara de raiva com que eram ditas.

Além disso, essa miúda exigia de Isabel todos os dias um tostão ou dois, caso contrário o rol de asneiras era ainda maior e mais grave, e com testemunhas sempre inventadas.

Isabel, no início, cumpria o que a colega a intimidava a fazer. Como tinha fome, começou por ir quase todos os dias comprar um pão para merendar no recreio, numa pequena mercearia que havia ao lado da escola. Em casa convencia a mãe a dar-lhe um tostão, coisa que a mãe de vez em quando fazia, mas que um certo dia se negou a fazer. Queria explicações. Graça queria saber para que queria a filha, todos os dias, um tostão ou dois. Isabel, nesse dia, foi para a escola a chorar, cheia de medo.

Um dia, a senhora da mercearia encontrou a Graça e disse-lhe:

- “Tenho na mercearia uma pequena conta de pão que a sua menina lá vai buscar quase todos os dias, ela diz sempre que a mãe depois paga, mas como a Graça não tem passado, estou a dizer-lho agora”.

Graça ouviu, estupefacta. Todos os dias enviava uma merenda para a Isabel, e pensou que algo se devia estar a passar.

No dia seguinte, a cena dos tostões repetiu-se e Isabel viu-se obrigada a contar à mãe o que se passava, por tanto ela insistiu em obter um esclarecimento. Graça pegou na mão da filha e foi com ela até à escola:

- “Vamos falar com a professora, que isto vai ter de se esclarecer.”

Naquele tempo, não era usual as mães irem à escola falar com os professores. Só no início e no final do ano escolar.

Pelo caminho, Isabel ia tão aflita que mal conseguia andar.

Mal chegaram à escola, Graça foi pagar a conta do pão na mercearia do lado da escola com vários pedidos de desculpas. Uma despesa que correspondia a mais de vinte pães. Ambas estavam um pouco envergonhadas com a situação.

Na rua em frente à escola, rapidamente se juntou uma pequena multidão, numa grande algazarra. Mal a professora chegou, mandou calar a miudagem e começou a conversa com a mãe de Isabel.

Graça queria ser esclarecida acerca do desaparecimento do pão da filha dentro da sala de aula, o que levou à conta na mercearia. Gostaria de saber porque precisava Isabel   quase todos os dias de lhe pedir dinheiro, que não sendo muito, era o suficiente para a deixar desconfiada. Quando não lho dava, Isabel ficava muito agitada.

O grupo em redor da professora, da Graça e da filha, tentava dar palpites, dizendo cada um dizia uma coisa distinta, e, de repente, tudo começou a ficar claro.

Foi chamada a menina que estava elencada para jurar em falso, que meio envergonhada e aflita acabou por contar tudo o que sabia. Foi uma confusão tão grande que nesse dia não houve mais aulas.

A mãe da miúda que roubava o pão foi chamada à escola. Nesse dia ficou tudo finalmente esclarecido. A professora castigou quem devia ser castigado. Isabel não sabia, nem conhecia as asneiras referidas. Dizia-lhe a mãe que essas palavras eram sapos feios a sair da boca de quem as dizia.

Mais tarde, quando Isabel ia para casa com a mãe, a porta de casa da colega intriguista estava aberta e Isabel viu que, além de ter ido para casa puxada pelas orelhas, estava debruçada numa cadeira e levava  palmadas no rabo com um cinto.

O pão de Isabel nunca mais desapareceu, nem lhe exigiram tostões, mas a manipulação das colegas continuou. Ninguém brincava com Isabel, nas rodas ao lenço, às escondidas e à apanhada, aos reis e às rainhas. Aquela menina comandava todas as outras.

Assim não era fácil andar na escola. A marmelada no pão sabia-lhe a amargo.


Preferia o pão da mercearia sem nada.

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