quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Lições de vida



Com o regresso da mãe a casa, depressa tudo voltou a ser como antes. Os desencontros, as discussões entre os pais de Isabel, os dias em que se respirava tranquilidade. O coração de Isabel vivia em sobressalto, não sabendo que lá fora, em outros mundos, se lutava pela liberdade e pelos direitos da criança. Isabel não tinha amigos. Se não fosse o irmão, estaria completamente isolada, preocupada só com as quezílias de casa.

De vez em quando ia com a mãe à mercearia e ao padeiro, e já começava a aviar uns recados sozinha. Pelo caminho, repetia tantas vezes o que a mãe lhe pedia, que chegada à loja, de tanto repetir inventava um termo novo, e ninguém a entendia,e lá voltava a casa numa correria para perguntar à mãe o que é que ela queria.

Isabel era muito recatada. Talvez porque não a deixavam brincar com os outros meninos. Estava sempre com a  mãe, escondida no seu canto. Os outros miúdos nem a conheciam. Sempre que ia à rua com a mãe o João até podia ficar a jogar à carica, mas ela ia tinha de ir logo para casa.
Um dia a avó Olinda, que sempre criou porcas num curral, para parirem ninhadas de leitões para vender, disse-lhe: "Vem daí comigo ao porco com a porca, que a tua mãe deixa".
-"Que remédio tem ela senão deixar...” - pensou a Isabel.
Agarrou num saco de milho, imitando a avó, e lá foi a encaminhar a porca pela estrada. A avó levava uma pequena verdasca, com a qual ia guiando a porca pelo caminho. O barulho do milho dentro do saco chamava a atenção da porca, e como o trânsito se limitava à passagem de uma ou outra bicicleta e de algum carro de bois, o perigo em fazer este trajecto não existia.

A certa altura, a avó fez um desvio para um beco, comprido e estreito, mantendo-se à frente do animal. A Isabel, atrás, continuou o seu percurso. A certa altura, passa por elas um miúdo um pouco mais velho que Isabel, reguila e travesso que só visto, criado à solta, filho de mãe solteira e de gente humilde e pobre, que com uma verdasca que trazia na mão, ferra no rosto de Isabel uma verdasca que deixou uma marca que só visto. Ela bem se queixou, mas Olinda seguia sempre em frente, sem ligar nenhuma às queixas da neta, preocupada com a possibilidade da porca perder a sua vez, pois o porco (e o seu dono) há muito que a esperava.


Sem dar importância ao sucedido, a avó chamava Isabel, que entre lágrimas e lamentos não largava o seu saco de milho, que já nem tinha força para agitar. À medida que a dor amainava, o vinco no rosto de Isabel ficava mais vermelho e saliente e Isabel tentava afagá-lo com a mão. Chegadas à casa da senhora onde todas as porcas da aldeia iam acasalar, a avó e a senhora juntaram os animais num terraço murado.

O porco era gigante. Começou a andar às voltas atrás da porca e a certa altura salta-lhe para cima. Pareciam um castelo - os dois encavalitados formavam uma torre - e Isabel, de cabeça muito erguida, olhava para aquele acontecimento meio amedrontada.
A porca chiava tanto, que por momentos Isabel esqueceu o ardor do seu rosto, e lamentou a sorte da porca. Algo lhe dizia que aquilo devia ser especial, mas lamentou o acontecido. Isabel sabia que a parir a porca também gemia muito, pois de outras vezes já tinha espreitado no curral, e ouvia o animal a chiar muito.

Não perguntou nada à avó. Não se sentia confortável. Retirou-se dali evitando ver aquela cena confusa e brutal. A avó não lhe explicaria o que era aquilo, dizendo-lhe certamente qualquer coisa para a calar. Era uma mulher de poucas palavras, e aquilo para ela era trabalho e mais nada. Com a mão afagando o  rosto, esperou ansiosa a hora de sair dali com a avó.

Mais tarde contaria o que tinha visto ao irmão, que talvez lhe explicasse.

De volta a casa, voltou a comentar com a avó o que o miúdo lhe tinha feito, pois ainda lhe doía o rosto. "Bem feito, que é para não te meteres com ninguém", dizia a avó. Em casa, a mãe pôs panos de água fria no rosto de Isabel que entretanto começara a inchar, inchaço que levou muitos dias a passar.

Também a barriga da porca inchou e passados uns tantos meses, lá passou a avó uma noite inteira a ajudar a porca a ter os seus porquitos. Aquele namoro tinha resultado, foi o que pensou Isabel.

Isabel tinha contado a cena que vira ao irmão, e o João fartou-se de rir. Ela não precisava de mais explicações. Vir ao mundo custa, viver não é fácil e ser mãe também não.

No curral, a porca gemia mais alto em momentos espaçados, quando a avó puxava mais um porquito pela zona traseira da porca. Limpava-o com um pano e punha-o a mamar numa teta da mãe, sempre com cuidado, não fosse a porca com as dores dar uma volta e pisar ou matar algum filhote. Estava neste trabalho dentro do curral, sem abandonar o animal que nesta altura tinha sempre direito a um ninho feito com palha muito limpa, por vezes uma noite inteira.

Era uma cena  linda e ternurenta. Isabel achava que aqueles pequenos animais eram os mais lindos do mundo. Um dia, mesmo sabendo que os leitões depois de algum tempo eram destinados a venda, arriscou pedir à avó que lhe desse um.

Na verdade, num parto em que nasceram mais leitões que o esperado, a avó Olinda deu um à neta. A porca não tinha tetas para tantos filhos e além disso aquele era pequenino, foi o último a nascer e disse ela que ele não vingaria.

Isabel cuidou dele com todo o carinho.  Pôs-lhe um saco de água quente numa caminha improvisada, deu-lhe leite por uma tetina especial, que a mãe lhe arranjou, foi uma autêntica mãe.
Uma noite porém, o porquito saiu do ninho. Arrefeceu. Perdeu-se do ninho. De manhã, Isabel não conseguia acreditar. O seu porquito estava deitado, teso e hirto, no cimento vermelho do corredor frio da como se tivesse sido sempre assim. Estava morto.
Isabel nunca mais foi com a porca ao porco.
Não mais esqueceu a verdascada, que ainda lhe sentia o dor.
Cada dia que passava, Isabel crescia no tamanho e no saber.

Aprendia  sozinha com o que via e vivia, coisas que lhe aumentavam as dúvidas e o medo.

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