sábado, 6 de março de 2010

O comboio

Depois de um ano de ausência forçada no liceu, Isabel retoma os estudos com mais vigor e mais senhora de si. Estava certa que não se lembrava do que tinha aprendido anteriormente, tinha a cabeça cheia de duvidas,  mas muita vontade de recomeçar. Detestava era a figura com que teria de aparecer no liceu.  Engordara muito no ultimo ano devido ao tratamento. Dos pés à cabeça  a roupa que vestia, dava-lhe uma  figura que a fazia  sentir mais o ridicula possivel, mas que fazer! Detestava o casaco azul corte direito, enorme, de um azul  tão feio que não havia outro, cheio de fios puxados, e os ombros muito descaídos. Nunca viu ninguém com casaco daqueles. Os sapatos que o pai lhe comprava grandes  para servirem muito tempo, e que ia sucessivamente pintando, para durarem  ainda mais tempo, eram os mais feios que alguma vez ela  tinha visto e por mais que crescesse nunca mais ficavam ao tamanho do pé. A pasta modelo de homem, horrível, que tinha de usar para não estragar os livros que já chegavam á sua mão todos velhos. Detestava aquela sua figura. Isabel não dava opinião de nada que vestia. Salvava-se a bata do liceu que tapava a roupa que Isabel vestia, com muita pena de não lhe tapar também os pés.
Tinha mesmo a certeza que era uma menina feia sem  graça nenhuma. Só alguns anos mais tarde quando aprendeu com a sua amiga retornada de Moçambique, a tirar moldes da revista Burda, e aplicá-los a uns cortes de tecidos que comprava, é que conseguiu dar uma reviravolta ao seu visual, feio, ridículo, sem ar nem graça  naquela altura, capaz de afastar qualquer um de fazer amizade com  ela.  Isto  era o que ela pensava. Até lá, limitou-se a tapar o corpo com as simples roupas que a mãe lhe arranjava para vestir.
Assim de manhã,  com o seu casaco azul vestido, quando as aulas começavam ás oito, Isabel ia com o pai no comboio das sete. Saíam de casa ainda de noite muitas vezes com  frio chuva e muita geada. Naquele percurso de comboio o que mais a confundia era o comportamento do pai. Muito diferente do que era em casa, o pai parecia ter alguma intimidade com muitas daquelas pessoas, sobretudo mulheres.Ele e elas nunca se calavam. Conversavam a viagem toda. Riam muito e Isabel sentia que aquelas conversas não eram normais. Tudo aquilo tinha o cheiro de malícia. Todos estavam demasiadamente sintonizados em conversas apimentadas e proibidas. Era o que Isabel pensava dessas conversas, durante as quais o pai até se esquecia que ela estava  ali com ele.
“Porque seria que em casa o pai não conversava assim com a mãe ?“ “Porque seria que em casa o pai não se ria daquela forma?”
Isabel ouvia em silêncio, e pensava que o melhor era a mãe nunca saber dessas conversas com aquelas mulheres que pareciam conhecer muito bem António. Desejava mesmo que nunca ninguém lhe fosse contar nada.  E pensava estas coisas constantemente, no caminho, nos intervalos, no liceu.
Muitas vezes, olhando as outras meninas interrogava-se se em suas casas tambem elas viviam com medo....
Sempre que  os horários do liceu, obrigavam Isabel a viajar sozinha,  ela ia sempre preocupada. Receosa de tudo e todos, não se sentia nada á vontade. Qualquer comportamento menos habitual numa pessoa, um olhar, um movimento brusco, fosse o que fosse, fazia disparar o seu coração de aflição.
Isabel era medricas, envergonhada e sem graça, tanto que nem se sentia normal. Com horários diferentes das antigas companheiras de viagem, muitos eram os dias em que, enquanto não chegava a casa se sentia angustiada. Tudo isto piorou bastante desde o dia em que ao abrir a porta de um compartimento de uma carruagem, para procurar lugar, um homem lhe abre imediatamente a gabardina e ela fica com os olhos esbugalhados enfrentando o pedaço de carne castanha espetada, enorme e feia que lhe saía da braguilha das calças e que ele abanava como o gato abana a cauda. Pensou que morria ali! Aquilo não era verdade! Bateu a porta, correu como o vento até ao fim do comboio e procurou sentar-se á beira de alguém conhecido da aldeia. Estava pálida e ofegante. Parecia que tinha visto algo de outro mundo. Uma senhora bem lhe perguntou o que tinha, mas ela não articulou palavra, estava muda sem conseguir articular palavra. Nunca ninguém lhe tinha falado que aquilo podia acontecer. O que era aquilo?                                                    
Daí em diante o comboio tornou-se um calvário. Todos os homens lhe metiam medo e os que usavam gabardina ainda mais.
Esta situação, com o facto de mais tarde numa paragem de autocarro, um homem esfregando ferozmente o sexo, lhe propor que fosse com ele para o fundo do parque, fazer não sabia ela o quê , tornou a vida de Isabel pela cidade, um autentico suplicio. Imaginava que a qualquer momento algum homem a “atacasse “ com aquele instrumento, que a agarrasse a puxasse, lhe dissesse alguma obscenidade, a forçasse a algo estranho.  Tinha medo de tudo isso e não tinha ninguém para a ajudar.
Estava deveras preocupada com o sua sobrevivência. Tinha que ter muito cuidado. A mãe nunca lhe tinha falado daquelas coisas, nem de nada parecido.
Aquelas cenas estavam a pô-la doente de terror. Tinha frequentemente pesadelos e como se já não bastasse o que vivia em casa com as discussões familiares, tinha agora medo da rua  e das pessoas. Começou a pensar que não tinha sorte nenhuma. Parecia um Calimero, mas a sério.
Claro que mais uma vez não falou nada em casa. Guardava tudo para ela e sofria tudo em silêncio. Não sabia como falar daquelas coisas, tinha medo, muito medo e vergonha. Para complicar,  mais tarde o pai obrigava-a a viajar em primeira classe para ir mais protegida, o que era muito pior, porque Isabel ia muito mais só. E o pior é que o pai julgava que aquela era a melhor forma de proteger Isabel.
Ela estava numa encruzilhada . Queria estudar mas tinha medo do mundo, das coisa do dia a dia, das pessoas. Cada dia pensava que morria. Era uma situação dramática. Mas tinha que continuar.
Todos os dias aprendia coisas novas, mas nem todas muito fáceis de sozinha conseguir compreender.
A vida de Isabel não era fácil. Olhava imensas vezes o rostos das pessoas e perguntava-se se também elas viviam assim assustadas. Pareciam felizes riam-se, davam gargalhadas. Ela sabia que havia nela alguma coisa errada. Nunca achava graça a nada nunca tinha vontade de se rir.Vivia em sobressalto.
Será que iria sobreviver e resistir a tanta aflição?
Não seria melhor não existir?
Ou seria que todos teriam os seus medos e fobias?

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