domingo, 14 de março de 2010

O cordão

Todos os verões, chegado Setembro Isabel e a familia  iam de férias para a praia.
Naquele ano, nessa altura Graça andava perturbada. Alguma coisa estranha se passava com ela. De vez em quando perguntava ao João e á Isabel se lhes emprestava o dinheiro que juntassem para levar para a praia. Isabel achava esse pedido estranho.
A mãe precisava da ajuda monetária dos filhos. Isso nunca tinha acontecido.
Tinham alugado uma casa diferente. Com um pequeno terraço tapado no interior, a casa ficava num primeiro andar. Ao cimo das escadas entrava-se logo na cozinha e todas as outras divisões se dispunham de forma harmoniosa, cada uma com uma janela para a rua. O quarto de Isabel ficava num vão de escada, junto á cozinha. O João precisava sempre de um quarto melhor porque tinha de estudar.
Estavam reunidas as condições para que nesse ano tudo corresse bem. Da casa á praia era um pulinho. Muito perto do padeiro e da mercearia, a família poderia dedicar todo o tempo de lazer ao sol e ao mar.

Mas a mãe continuava inquieta.
Um dia, no inicio das férias ao jantar, o pai disse á mãe:
“quero que ponhas o colar de ouro que tens, quando sairmos amanhã á noite a passear”
A mãe respondeu logo que não podia pois não o tinha consigo. Ficara na casa do canto.
“Muito bem”, disse o pai,” amanhã vou á cidade, vais comigo e passamos em casa a buscá-lo “.
Graça arrepiou-se toda. Isabel não sabia o que se passava mas algo não estava bem com a mãe, estava pálida.
Depois do jantar e de todos deitados, a mãe foi á cama de cada um dos filhos pedir emprestado o dinheiro que tinham junto esse ano para as férias.

Entre dentes Isabel percebeu que a mãe disse, que com o dela devia chegar. Algo estranho se passava e Isabel, preocupada, teve dificuldade em adormecer .

O pai nunca os deixava a ela e ao João sozinhos na praia. Se isso ia acontecer no dia seguinte é porque algo anormal tinha acontecido.
No dia seguinte o João e Isabel foram para a praia, os pais pegaram no carro e foram á cidade, com passagem pela aldeia.
No fim da manhã, ao regressarem a casa vindos da praia os irmãos  encontraram  instalado o caos na casa da praia. Isabel não queria acreditar no que via.
Em frente á cozinha, pela escada abaixo o chão estava cheio de sopa. A cozinha também toda suja de sopa, panela e concha no chão mostravam sinais de violência. Não havia nada ao lume, o pai não estava e a mãe estava deitada e  chorava. O coração de Isabel disparou.
Foram as férias mais terríveis da vida dela. Porquê tudo aquilo?

O pai tinha jogado a sopa escada abaixo, e o resto das cenas que se terão seguido Isabel bem as imaginou.

A mãe, na cama, só chorava, não conseguia explicar nada. O João meteu-se no quarto. Isabel sentiu-se incumbida de limpar o que os pais tinham sujo.
Como pôde, com o coração a prever o pior, foi tirando baldes de agua do poço, e aos poucos escada acima escada abaixo, conseguiu deixar a cozinha e as escadas limpas. Isabel ouviu muito bem as senhoras vizinhas do terraço comentarem “coitada da miúda, não tem culpa de nada e olha aí…estes pais!”
Primeiro a mãe disse que estava com dores de barriga e não se podia levantar, mas Isabel sabia que quando o pai batia na mãe ela ficava de cama vários dias. Graça não chorava com dores de barriga…
-“Vais ter que fazer a comida para todos”,disse-lhe a mãe. E da cama foi dizendo a Isabel o que tinha que ir juntando no tacho.

Tudo aquilo estava a ser muito difícil para Isabel, mas piorou quando o a pai chegou da rua. Não falou muito, mas vinha com uma cara que anunciava o fim do mundo. Através de Isabel mandava recados á mãe, e vice versa. Estava instalado um clima pouco recomendável e nada acolhedor. O pai deixou de falar com a mãe durante muito tempo, e Isabel era a intermediária. Isabel sentia que eles não deviam fazer isso com ela. Nesse ano nem pensou no grupo da praia, nem no mar, nem no sol, nem em coisa nenhuma. Nem percebia  porque tinham que continuar todos ali.
O melhor que soube, fez tudo o que foi preciso para a primeira refeição, e para umas tantas que se seguiram. O pai permanecia pouco em casa, o João ia para a praia e Isabel ficava a arrumar e a cozinhar. Estava instalado um clima de guerra muda, em casa.
Isabel andava numa rodovia, sem tempo para pensar nela ou nas férias. Uma tarde conseguiu que a mãe lhe contasse o sucedido. Ela tinha tido necessidade de dinheiro para qualquer coisa e para não dizer ou pedir ao pai, foi á cidade e penhorou o cordão de ouro. Mais tarde quando pudesse iria buscá-lo. O pai ficou fulo de raiva quando soube. Desconfiado passou em casa antes de ir á cidade e o colar não estava lá. Depois foram os dois buscá-lo á penhora. Uma vergonha para António.

Não precisava saber mais nada. Isabel imaginou tudo o que terá acontecido depois. Estava espantada. Por isso a mãe precisava do dinheiro dela e do João. Mas porque não disse, a mãe ao pai que não tinha dinheiro?
Ele dizia que dividia sempre o dinheiro por semanas e ainda juntava algum para fazer a casa. Isabel não entendia porque tinha a mãe feito isso. Se lhe faltou dinheiro porque não falou com o pai?

Ele não gostava que faltasse nada essencial em casa, teria ajudado, se fosse para algo muito importante. Ou não? Mas a mãe teria que dizer onde gastou todo o dinheiro. Isabel conhecia o pai.
Isabel não conseguia entender a mãe, mas também sabia que ela tinha medo do pai e com certeza por isso não lhe contou que precisava de  mais dinheiro. Porque tinha que ser sempre tudo tão complicado em casa dela?

Não havia hipótese da situação  melhorar. Só o tempo para acalmar tudo. Mas pensou seriamente que daquela vez o pai nunca mais falasse em casa.

Mentir, fingir, esconder não resolve coisa nenhuma. A violência também não.
Isabel estava farta de viver ensombrada pelo medo de tudo. E de todos.
Ela não queria nada daquilo para a sua vida. Não tinha certeza de mais nada, só disso. Vivia em constante sobressalto, e no futuro não era isso que queria para si.
Isabel queria paz, amor, e muita serenidade. Cada dia crescia  em sofrimento e aprendia  a vida, vendo tudo em silêncio.

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