quinta-feira, 18 de março de 2010

Crueldade

A avó Teresa sempre que havia festa na aldeia do filho do meio, armava-se em cozinheira e ajudava a nora a preparar e cozinhar as comidas para as refeições dos dias festivos. Em casa desse tio de Isabel, havia sempre convidados para se juntarem á mesa, além de familiares. As refeições eram sempre compostas de vários pratos e a mesa ficava sempre recheada de coisas boas.


As pessoas almoçavam e jantavam num animado convívio. Riam e conversavam com muita animação. As travessas sucediam-se umas ás outras sem parar, parecendo que os estômagos nesses dias tinham sido avisados que não podiam parar.

Os festejos da Nossa Senhora eram levados com rigor, tanto nas casas das pessoas, como na participação de todas actividades programadas para essa altura. Cada ano a comissão encarregada de elaborar o programa das festas, tentava sempre superar o trabalho realizado no ano anterior.

Em casa dos tios de Isabel ninguém faltavam a uma parte sequer dos festejos, exactamente o oposto do que acontecia em casa de Isabel. Cumpriam todos o calendário pagão e o religioso, seguindo sempre o mesmo ritual, como se isso fosse obrigatório. Almoçavam comendo e bebendo do melhor, e depois viam a procissão religiosa. Á noite depois do jantar iam aos arraiais.

Nos arraiais juntavam-se pessoas oriundas de muitas aldeias vizinhas. Do canto onde Isabel vivia, nunca saía ninguém para esse tipo de diversões ,como se aí esse tipo de coisas fosse altamente proibido.

Iam aos bailes, viam algum artista de renome, convidado especial, vindo da capital. Comiam uma fartura, pipocas ou um folar. Visitavam a barraca da quermesse, a tentar a sorte nas prendinhas. Não faltavam os balões e os bananins para os mais pequenos, e as tascas rústicas onde os homens se juntavam a beber uns copos com amendoins ou tremoços a meias, com duas de conversa.

Teresa e toda a família da casa dos tios de Isabel, iam a esses festejos. Ver tudo bem visto era o lema, como se no final tivessem que fazer uma reportagem, pois só se vive uma vez e amanhã é outro dia. Pensavam todos assim. Ninguém se preocupava em pensar se o bilhete para o arraial era caro, se as refeições ficavam caras, se parecia mal, se no dia a seguir se trabalhava ou havia aulas, se os filhos eram novos para sair á noite.

Se havia festa todos saíam á noite, sem reclamações e ponto final.

Em casa de Isabel nada disto acontecia. O João á medida que ia crescendo ganhou liberdade para sair á noite e ir aos bailes, com a condição de cumprir os horários estipulados pelo António. Isabel não podia sair para lado nenhum , então a bailes nem pensar…

Mas quando já estava mais crescida , a mãe deixava-a ir a casa do tio ver passar a procissão da Nossa Senhora, com a condição de voltar para casa quando terminasse. E era sempre assim que acontecia.

Um desses dias á tarde, Isabel arranjou-se o melhor que pode e pôs-se a caminho para casa do tio. Teresa andava muito atarefada. As pessoas numa sala ao lado da casa, conversavam animadamente, havendo ainda espalhados por cima da mesa copos, garrafas e alguns pratos de bolos. O almoço ainda não tinha acabado e a avó Teresa e a bisavó Júlia tinham que arrumar uma quantidade de loiça enorme. Panelas, pratos, copos, e talheres tudo para lavar e limpar. No fogão ainda havia tachos repletos de comida . Parecia que tinha havido ali um casamento.

Isabel foi bem recebida, o que era normal. Aquela tia era simpática, perguntava sempre por todos, e oferecia-lhe sempre algo de comer.

A avó Teresa olhou para Isabel e perguntou sem hesitação:
“Que roupa é essa que trazes vestida, essa saia é feia, não estás nada bem vestida, andas sempre tão…”
Isabel olhou-se rapidamente de alto a baixo e disse á avó, que fora a mãe que lhe fizera a roupa, como era habitual e que a achava muito bonita. Tentou levantar a sua auto estima e valorizar ao máximo o seu aspecto e a roupa trazia vestida, feita pela mãe, sabendo muito bem que a avó dizia a verdade. Não podia fazer mais nada. Mas a avó continuou:

“A tua prima Anita tem um vestido lindo para levar logo ao baile, e hás-de ver o que ela foi vestir agora para ver a procissão, cada um mais bonito que o outro. Isso é que são vestidos lindos e acho que tem mais qualquer coisa nova para vestir no próximo fim de semana”

Isabel nunca sonhara ter nenhum vestido daqueles, mas imaginara sempre que a avó Teresa gostava dela, tal como ela era. Naquele momento sentiu-se insignificante e feia e teve a certeza que ninguém gostava dela, nem a avó Teresa que, ela admirava tanto.

Quando a prima apareceu, olhou-a e reparou que os seus pés brilhavam como nunca. Uns sapatos de verniz preto, enfeitados com um laço de veludo e uns pequenos brilhantes, transformavam os pés da Anita, nos pés de uma princesa. O vestido era lindo, como todos os que ela tinha, mas os sapatos da Anita eram iguaizinhos aos sapatos dos sonhos de Isabel.

Nesse dia Isabel não quis comer nenhum pedaço de bolo, nem beber sumo. Nos seus ouvidos as palavras da avó continuavam a doer e nos seus olhos só via brilhantes, os sapatos da Anita.

“vais ao baile logo?”, claro que a avó sabia muito bem que ela não ia nunca a esses sítios mas insistiu na pergunta. Isabel não ouvia mais nada. Claro que não ia a baile nenhum, e só não se punha a andar imediatamente dali para fora, porque se chegasse a casa mais cedo, a mãe iria querer saber o motivo de tão curta visita.

Ficou calada fazendo-se de surda, respondendo só ao indispensável.

Mal a procissão da Nossa Senhora passou, agradeceu a todos, despediu-se e pôs-se a caminho de casa.

Pelo caminho não sabia o que lhe doía mais, se as palavras da avó, se o brilho dos sapatos da Anita, se o facto de nunca ir a baile nenhum.

Estava triste demais para pensar em tanta coisa. Nos olhos as lágrimas mal lhe deixavam ver o caminho. Não era a primeira nem seria a ultima vez, que Isabel se sentia assim, carente, triste, infeliz, diferente e muito só.

Guardou o brilho dos sapatos na sua mente e pensou que um dia teria uns assim. Dos vestidos não quis saber. Claro que sentia tristeza por não ir dançar como as outras da sua idade, mas como sentia vergonha, medo de fazer má figura e o pai nunca a deixava ir, já nem fazia questão. Dos vestidos já nem lembrava a cor, mas estava muito triste com a avó Teresa. Será que ela imaginou como doeu a Isabel tudo o que lhe disse?

Chegada a casa Isabel não comentou nada com a mãe, apesar desta a ter achado estranha. Isabel disse que esteve muito tempo em pé e que com o calor da tarde estava cansada. Á noite no se quarto negro, sentada á secretária, que agora tinha um candeeiro, Isabel ainda pensava em tudo.

Tinha descoberto que estava desiludida, frustrada, com a avó. Tinha que aprender a viver com mais estes sentimentos que tanto a magoavam. Sentia-se rejeitada pela avó Teresa.

Um dia, ia mostrar á avó  Teresa,que também era bonita, interessante pelo que era, sem festas ,sapatos ou vestidos.  Não eram os vestidos que a fariam mais bela. Apesar de tudo Isabel gostava muito daquela avó.

O interessante é que Teresa um dia confirmou, que Isabel era uma mulher maravilhosa, linda, esperta e inteligente, que aprendeu a conviver com o lado bom e mau da vida e sobrevivia dia a dia, no mundo cruel e duro onde cresceu. mas isso só aconteceu muito mais tarde.

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