quarta-feira, 10 de março de 2010

Injustiças e o cinema

Cinema. Um ecrã gigante onde se viam passar histórias vividas ou inventadas por pessoas. Isabel nunca tinha ido ao cinema. A ideia que fazia dele, era de que seria numa sala grande,parecido com ver televisão, mas em tamanho muito maior. O que ela gostaria mesmo, era de ver nesse ecrã gigante, as histórias de amores arrebatados e impossíveis, que tantas vezes leu nas revistas aos quadradinhos de corin tellado, que a Zézita lhe emprestava.
Um certo dia, umas jovens mais velhas da aldeia com quem Isabel por vezes conversava, conveceram os pais da Isabel a deixá-la ir com eles ao cinema à cidade. Essa ida foi desastrosa. O grupo era grande e ao chegar e comprar os bilhetes alguém tinha de ficar na rua, pois já não havia bilhetes para todos. Viram o filme as mais velhas e os namorados, e claro está a Isabel ficou na entrada do cinema, á espera que o filme acabasse para voltar com eles para casa. Com esse grupo Isabel nunca mais foi ao cinema.
A ideia que tinha da sala e do ecrã do cinema ficaram na mesma pois quando tentou espreitar para dentro da sala, não viu nada. Estava tudo demasiado escuro.Foi tudo tão rápido, por ser proibido, pois não tinha bilhete, que nem olhou o ecrã. A solidão da espera fê-la perder a vontade de lá voltar.
Mas para Isabel as idas dramáticas ao cinema, não tinham acabado.
Naquele ano de férias na Falésia, António resolveu levar a família ao cinema a ver um clássico português, o filme "Capas Negras", com Amália Rodrigues e Alberto Ribeiro.
Isabel estava nervosa. Sabia que para qualquer lado que fosse, o pai aprontava sempre qualquer coisa. Fazia ou dizia coisas que a assustavam, e fazia-a sempre sentir vontade de se enterrar por um buraco. Ou era alguém que não se calava, o lugar que lhe davam que não estava certo, o fulano á frente que não parava quieto, tinha sempre alguma coisa com que implicar, o que á partida, antes de sair de casa, a deixava ansiosa e aflita.
Pensou em convidar uma amiga do grupo da praia com quem tinha mais afinidade, para ir com ela, a Guida. assim estaria acompanhada e nem ia ligar importância ás implicâncias do pai. Talvez com a presença da amiga tudo corresse melhor.
Perguntou á mãe e ela disse que sim, que podia dizer á Guida para ir com eles.Era uma menina que ia para a praia com as tias, com quem Graça conversava na praia e parecia ser uma moça ajuizada. No final iriam levá-la a casa.
Isabel estava nervosa por ir ao cinema, mas desta vez, na companhia da Guida, não ia ficar assustada ou envergonhada com nada.
Tudo estava a correr bem. No intervalo a amiga de Isabel perguntou se não podiam sair para comprar pevides ou tremoços. O pai contrariado disse que sim , mas advertiu logo :” não demorem, olhem as horas do intervalo “
Chegada á rua mesmo antes de comprar as pevides, apareceu um jovem amigo da Graça, que a convidou a dar uma volta nos carrinhos de choque. Não esperaram pela reacção de Isabel e muito menos pelo que ela lhes tentou  dizer. Deram um salto para dentro da pista, ocuparam um dos carrinhos livres, e rápidamente todos começaram a andar, num rodopiar maluco e constante. Isabel bem lhe gritava que tinham de entrar para o cinema, mas a amiga nada, ria e continuava a girar no carro a apanhar encontrões dos outros carros.
Isabel estava a imaginar que seria giro ter um amigo que a convidasse, mas achava isso impossível. E enquanto imaginava isso tentava, gritando como podia, dizer á amiga que ia indo para dentro do cinema.
De repente ao lado de Isabel aparece o pai que lhe dá um safanão no braço e sem pedir explicações, lhe espeta uma bofetada que a fez sentir as ondas do mar no nariz. Depois berra com Isabel a perguntar pela amiga, e quando a viu num dos carrinhos, empurra Isabel com toda a força para dentro da pista para ela a ir chamar. Isabel mais que aflita, estava envergonhada. Todos olhavam para ela, que lutava contra a força do pai, para evitar algum acidente. Os carros giravam  e chiavam muito depressa e ela não conseguia chegar á amiga.
Alguém disse “coitada da pequena”
E a cena continuou com os empurrões e Isabel a evitar entrar dentro da pista onde os carros corriam e chocavam uns nos outros sem parar.
O pai de Isabel parecia louco. Finalmente a corrida parou e a amiga veio ter com Isabel que chorava como uma madalena. A Guida  limitou-se a dizer:
” foi só uma volta, que mal faz”
De volta á sala do cinema Isabel não deixava de chorar. Não tinha feito mal nenhum. Estava envergonhada. Porquê aquela bofetada em publico se o pai nunca lhe batia?
Para quê toda aquela violência? Ali ganhou medo do pai .Parecia enfurecido e descontrolado.
Não viu mais filme nenhum. Os olhos aguados, o corpo machucado dos empurrões e o aperto no coração da vergonha ,não deixaram mais que ela conseguisse ver fosse o que fosse. Ainda se tivesse sido ela a ir andar nos carrinhos, mas a ela ninguém a convidaria, e mesmo que o fizessem ela não teria saltado logo para dentro da pista. Iria agradecer e entrar para a sala. Sabia muito bem que tinha de respeitar as ordens do pai.
Com um pai assim, quem é que alguma vez se arriscaria a convidá-la para o que quer que fosse? E todas estas questões fizeram dela  ali mesmo, naquele momento a "jovem menina "mais triste do mundo.
A caminho de casa o pai argumentava que ninguém tinha que lhe desobedecer, o que ele dizia era uma lei, para cumprir. Se saíram para comprar pevides não foi para andar de carros de choque. E dizia isso muito revoltado, acusando Isabel que em silêncio se considerava injustiçada. A amiga de Isabel, calada ,murmurava  entre dentes que não tinha feito mal nenhum. Graça dizia a António que tudo já tinha passado e que se acalmasse. Mas António fez mais . Continuou todo o caminho a falar e ditou um castigo para Isabel. Naquele ano teria de ir e vir todos os dias com a mãe para a praia. Não estava autorizada a sair a lado nenhum sózinha.
Isabel ficou ainda mais triste.
Nesse ano aqueles bocadinhos de tempo em que em grupo, estavam na areia sentados a conversar, não iam existir para ela. A mãe chegava sempre tarde e saía muito cedo da praia por vários motivos, ou tinha as refeições para fazer, ou ia á praça ,ou porque ia lavar alguma roupa, ou por outro motivo qualquer. Isabel estava inconsolável. Tinha a certeza que ninguém estava triste como ela e sabia que não tinha feito nada de mal.
Não conseguia tirar da cabeça aquela bofetada em publico com toda a gente a olhar para ela, e os empurrões que o pai lhe dava , quando ela simplesmente estava a imaginar como seria ser convidada por um amigo para dar uma volta nos carrinhos de choque.
Essas férias foram mais umas, de má memoria.
Por muito tempo as idas ao cinema nem lembravam a Isabel, e por mais tempo ainda, Isabel odiou o chiar dos carros de choque, e o barulho que faziam ao chocar uns contra os outros.
Cada vez mais, Isabel desistia de viver a realidade e refugiava-se no seu mundo de fantasias e do faz de conta, longe dos aglomerados de pessoas onde começava a sentir-se sempre mal.

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