quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Nasci de pernas para o ar



Nasci de pernas para o ar
Nessa manhã não havia anjos
As mulheres de branco, gritavam, giravam
e num coropio constante nunca paravam
E os anjos que eu sei são meigos e doces 
não berram nem correm aflitos
voam e têm asas macias e fofas 

E do buraco esquisito onde me encontrava
eu via-as a falar muito, meio desesperadas.
não não eram anjos mesmo que aflitos
Era o trabalho. Muito que fazer.
Muita gente a nascer.
E eu ali escondida, que culpa teria disso acontecer?

O céu não estava estrelado, era de manhã
E o Outono anunciava-se cinzento e mesclado.
Mais um a nascer, (era eu)
berravam, as que pareciam anjos fardados
A noite fora longa
O mundo crescera, já tinha mais gente
Seres que mamavam, dormiam ou choravam
no colo das mães, 
deviam ser mães as que os agarravam
ou que  em minúsculas camas dormiam  descansados



Vá, vamos lá, temos que o tirar!

Dizem que as estrelas só aparecem de noite
E de manhã se escondem com medo de ser pescadas
e eu sabia que isso era verdade  

Os homens e as mulheres acordados, bradavam  
e eu ainda escondida, ouvia-os assustada

As estrelas escondidas fugiram zangadas
Voltariam ou não à noite, quando aquele tumulto findasse

E as mulheres vestidas de branco, mas sem ser anjos,
estavam cansadas e barafustavam
para quê mais um?
Não sabia que eu era uma, 
bem feito, enganei-as, para nada mas enganei-as.

E quando nasci gritei assustada, de raiva e de medo
não queria nascer, estava tão guardada
mas elas com mãos certeiras, ferozes, zangadas
puxaram por mim, puxaram
rasgaram o ventre da minha mãe, as entranhas de onde saí

E naquele dia em que todo mundo parecia às avessas
sem estrelas, que estas fugiram  por ser de manhã,
sem sol, por estarmos no Outono
parei de gritei, apareci nua, fiquei muda, toda calada
e por isso levei, levei tantas  palmadas
até que de novo gritei, berrei muito e tudo
de raiva, de ódio, de medo, 
e também delas que me batiam sem eu ter feito nada
que não eram anjos,
apenas mulheres muito bem disfarçadas



Não tinham que me bater nem tinham que me berrar
Eu estava ali, mas não pedi a ninguém para nascer
Não tive colo, nem berço
sei lá agora se os tive, 
não me lembro de mais nada nem quero recordar

Só me vejo  mais tarde de carrapito apertado
No cimo da cabeça,
dos bibes com folhos e dos sapatos mal aparentados
Das proibições de não poder correr, saltar, andar de bicicleta
Não poder sair à rua, ir a festas, ao cinema, sair com amigas (os)
Não poder namorar, dar beijos a quem eu quisesse
recebê-los de graça, por amor, com sabor a morangos maduros
Por ambos nos gostarmos, nos queremos bem
Beijos e morangos e muita de outra fruta,
toda madura e uito gostosa
Até da mais comum, barata ou de graça, 
que nunca comi e só provei mais tarde, 
mas nesta altura, que pena que tive, com outro sabor

Não poder fazer nada, não conseguir viver como idealizara.



Sim, porque um dia aprendi a pensar
E desejei muito não ter nascido para não sofrer
não ser penalizada por ser mulher
Não estar presa, acorrentada, ser violentada pela vida
Dos direitos que me pertenciam e me foram roubados
Por ter nascido fêmea  e não homem, como era esperado.
raios partam os homens, raios parta eu e a vida que me fugiu depressa
não me deixou gozar, experimentar quase nada

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