Nasci de
pernas para o ar
Nessa manhã
não havia anjos
As mulheres de
branco, gritavam, giravam
e num coropio constante nunca paravam
E os anjos que eu sei são meigos e doces
não berram nem correm aflitos
voam e têm asas macias e fofas
E do buraco esquisito
onde me encontrava
eu via-as a
falar muito, meio desesperadas.
não não eram anjos mesmo que aflitos
Era o
trabalho. Muito que fazer.
Muita gente
a nascer.
E eu ali
escondida, que culpa teria disso acontecer?
O céu não
estava estrelado, era de manhã
E o Outono
anunciava-se cinzento e mesclado.
Mais um a
nascer, (era eu)
berravam, as
que pareciam anjos fardados
A noite fora
longa
O mundo
crescera, já tinha mais gente
Seres que mamavam,
dormiam ou choravam
no colo das
mães,
deviam ser mães as que os agarravam
ou que em minúsculas camas dormiam descansados
Vá, vamos
lá, temos que o tirar!
Dizem que as
estrelas só aparecem de noite
E de manhã
se escondem com medo de ser pescadas
e eu sabia que isso era verdade
Os homens e
as mulheres acordados, bradavam
e eu ainda escondida, ouvia-os assustada
As estrelas
escondidas fugiram zangadas
Voltariam ou
não à noite, quando aquele tumulto findasse
E as
mulheres vestidas de branco, mas sem ser anjos,
estavam
cansadas e barafustavam
para quê
mais um?
Não sabia
que eu era uma,
bem feito, enganei-as, para nada mas enganei-as.
E quando
nasci gritei assustada, de raiva e de medo
não queria
nascer, estava tão guardada
mas elas com
mãos certeiras, ferozes, zangadas
puxaram por
mim, puxaram
rasgaram o ventre da minha mãe,
as entranhas de onde saí
E naquele
dia em que todo mundo parecia às avessas
sem
estrelas, que estas fugiram por ser de
manhã,
sem sol, por
estarmos no Outono
parei de
gritei, apareci nua, fiquei muda, toda calada
e por isso
levei, levei tantas palmadas
até que de
novo gritei, berrei muito e tudo
de raiva, de
ódio, de medo,
e também delas que me batiam sem eu ter feito nada
que não eram
anjos,
apenas mulheres muito bem disfarçadas
Não tinham
que me bater nem tinham que me berrar
Eu estava
ali, mas não pedi a ninguém para nascer
Não tive
colo, nem berço
sei lá agora
se os tive,
não me lembro de mais nada nem quero recordar
Só me vejo mais tarde de carrapito apertado
No cimo da
cabeça,
dos bibes
com folhos e dos sapatos mal aparentados
Das proibições de não poder correr, saltar, andar de bicicleta
Não poder
sair à rua, ir a festas, ao cinema, sair com amigas (os)
Não poder
namorar, dar beijos a quem eu quisesse
recebê-los de graça, por amor, com sabor a morangos maduros
Por ambos nos gostarmos, nos queremos bem
Beijos e
morangos e muita de outra fruta,
toda madura e uito gostosa
Até da mais
comum, barata ou de graça,
que nunca comi e só provei mais tarde,
mas nesta altura, que pena que tive, com outro sabor
Não poder
fazer nada, não conseguir viver como idealizara.
Sim, porque
um dia aprendi a pensar
E desejei
muito não ter nascido para não sofrer
não ser penalizada por ser mulher
Não estar
presa, acorrentada, ser violentada pela vida
Dos direitos
que me pertenciam e me foram roubados
Por ter
nascido fêmea e não homem, como era esperado.
raios partam os homens, raios parta eu e a vida que me fugiu depressa
não me deixou gozar, experimentar quase nada