Isabel sentada no banco de trás do carro nem conseguia respirar, nem sabia o que dizer, para ela era como se o mundo tivesse parado naquele instante e tudo de um momento para o outro, tivesse perdido todo o interesse e encanto. Estava aterrada, quase desconfiava mas agora que estava confirmado, sentia-se perdida, tinha morrido um pouco, só sabia que aquilo era medonho.
Pedro, calado, de cabeça inclinada como sempre, ouvia em silêncio como se fosse uma estátua, e Isabel não se lembra de ouvir da sua boca qualquer reacção, qualquer revolta. Ele era sempre assim, o bem e o mal sentia-os para ele, e em vez de reagir de qualquer forma naquele instante só ouvia…, ouvia unicamente, ou então era Isabel de tão aflita que estava que não percebia mais nada. Gerou-se um mal-estar constante, um sofrimento permanente, um perder a vida que não se viveu ainda mas que se quer ter ainda à nossa frente. Porque naquela idade ver-se um muralha pôr limites à vida é terrível, angustiante, é absurdo, triste e pouco natural.
E naquela altura tudo passou a ser diferente, o mundo passou a ser olhado por ambos mas essencialmente por Pedro de outra forma. Pedro foi internado, novamente operado, e Isabel passou durante um mês a andar de um lado para o outro, mas a angustia que sentiu quando o deixou pela primeira vez no hospital, não tem descrição possível, pela dor, pelo vazio e abandono, pela sensação de perda. O motivo, o local, a forma porque e como se separavam dava a Isabel uma dor e um desespero tal que não são possíveis de descrever. Em casa os filhos aguardavam-na e Pedro pedira-lhe
-Não contas a ninguém da minha doença, ouviste Isabel!
E Isabel não contou nada a ninguém nem a amigos nem a familiares, guardou tudo no seu coração que ia rebentando de dor pois não tinha com que desabafar.
Mas de manhã, antes de sair para visitar o Pedro no hospital, e depois de mandar os filhos para a escola, num canto do quarto que guarda na sua memória, todos os dias chorava até as lágrimas secarem, pelo Pedro que sofria, pelos filhos que precisavam dele, por ela que mesmo incompleta, se sentia assim imensamente mais infeliz, pois ela queria-lhe muito bem e não imaginava a sua vida sem o ter a seu lado.
Para Isabel era muito difícil esta vida dupla. Em casa tinha que se mostrar calma perante os filhos, dizer-lhes que tudo estava mais ou menos normal, que Maria sabia que o pai estava doente pois presenciara a conversa em casa dos tios, mas não sabia até que ponto a gravidade da situação da doença do pai, não podia falar com os pais nem com os sogros nem contar-lhes o que se passava com o marido. Mas quando ia para o hospital o seu coração ia aos pulos esperando sempre boas noticias, o dia da nova intervenção, depois os resultados da mesma, a alta de vez do hospital, e como fez uma enxertia, no local de onde tirou a unha, saber se a mesma tinha repelida. Isabel passava horas na Capela do hospital a meditar, era onde se sentia melhor. Passava os dias num corrupio de casa para o hospital e do hospital para casa, para atender aos filhos e atender ao Pedro. Quando estava num lado pensava nuns e no outro pensava nos ausentes, nesses tempos deixou completamente de pensar nela, e a vida deixou de ter a menor graça pois sem Pedro nada lhe interessava.
E os médicos falavam constantemente em percentagens e isso incomodava-a, deixava-a duvidosa, desconfiada, perplexa, e Pedro preocupado andava tenso, sem saber o que dizia, nem o que pensava. Isabel por vezes ouvia coisas que a magoavam mas tinha que ouvir, calar e consentir pois quem estava doente era ele e não ela, e ela fazia tudo para o deixar feliz.
Deu-lhe amor vivido e intenso, físico, difícil, doloroso e chorado como se fosse o ultimo, porque assim vivido é mais difícil, muitas vezes só para o fazer feliz, ficando ela a chorar porque a entristecia ainda mais, e viveu triste, inquieta e agitada até ao dia em que os médicos disseram ao Pedro pode ir e só cá volta uma vez por mês, mais tarde uma vez de três em três meses, depois de seis em seis meses, até que passaram seis anos na vida dos dois, e a vida voltou gradualmente ao normal e o Pedro reconheceu que até então, não teria sido um grande marido, e prometeu que iria mudar.
Nesse tempo muitos factos relevantes aconteceram:
“-Se Isabel não tivesse carta de condução teria sido difícil conduzir tantas vezes Pedro ao hospital (enquanto esteve internado durante um mês, vinha passar os fins de semana a casa), visitá-lo tão amiúde no hospital e levá-lo a todas as consultas, pois trazia um braço ao peito. Ficava aqui por terra a teoria de António, pai de Isabel, que dizia que ela não precisava de carta para nada, pois o marido a haveria de conduzir para onde ela precisasse.” Nesta altura conduzia Isabel o seu Y10 Lancia.
“-Pedro reconheceu que precisava fazer mais companhia a Isabel e que aquele homem que era antes já não existia mais, decerto porque aprendeu a ver a vida de outra forma“
“Tendo passado pela cabeça de ambos neste tempo, que já não iriam construir nenhuma casa, nasceu em ambos uma nova força, e essa casa havia de surgir, assim como em Isabel nasceu a certeza de que nunca deixaria Pedro por motivo algum. Precisava dele, porque apesar de ele ter muitas falhas, também lhe dava muita força que ninguém alguma vez mais lhe dera em circunstância alguma. Sentira isso quando ajoelhada na capela do hospital, à espera que Pedro chegasse da consulta derradeira, ele com o braço livre e solto no ar a olhou com os olhos rasos de água, se agarrou a Isabel e ambos choraram abraçados e emocionados, ali enfrente a Cristo, aquele altar, como a selar a sua união para sempre, num recomeço das suas vidas.
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