Lembro-me dela com ternura.
É como se estivesse aqui comigo, a fazer uma das coisas, que já com quase noventa anos fazia com toda a mestria. Tirar os borbotes e pontear as meias do genro e do neto, que rapidamente voltavam a ficar como novas, depois do tratamento que lhes dava. Fazia-o na perfeição, sem óculos, seguindo sempre o mesmo ritual.
Nunca foi mulher para estar sem fazer nada, quando não tinha que fazer inventava, que dentro de casa , uma mulher tem sempre o que fazer, basta querer, era o que ela dizia.
É verdade que não me lembro dela a dar gargalhadas ou rir muito ou pouco. Também não me recordo de a ver chorar. Sofria com certeza, mas com resignação. Devia aceitar tudo como sendo o seu destino, porque não reclamava de nada.
Não perdia tempo a falar com ninguém, mesmo com as vizinhas só o suficiente, mas todas a adoravam.
Nunca me recordo de a ver pela rua a conversar com alguém, de ir á mercearia, ao padeiro, ou até ir á missa ao domingo. Não me parece que alguma vez tivesse ido um funeral, não depois que eu a conheci. Recordo-me sempre de a ver em casa, ou no quintal.
Um dia disse-me, com muita convicção, que essa história da Senhora de Fátima não era verdade, era tudo inventado, isso sim. Não sabia, que iam as pessoas todas fazer em excursões ou a pé a essa terra, e não acreditava nada, que Senhora nenhuma de branco tivesse aparecido, por cima de arvore nenhuma, … as pessoas não tinham era mais que fazer … penso que foi a conversa mais séria que tivemos.
Nunca a ouvi dizer mal de ninguém, nem levantar a voz por nada…,mas para mim que era miúda e andava na catequese e até já tinha ido a Fátima, esse assunto era sagrado, e o que ela disse, inquietou-me.
Deixei-a falar. Calei-me. Não sabia como lhe dizer que estava errada. Pelo menos para mim que sou crente e acredito. De qualquer forma pensei que Deus lhe perdoaria pelo que estava a dizer, porque era uma boa mulher e não sabia o que dizia , e isso tranquilizou-me. Nunca mais falamos desse assunto. Afinal o nome dela era Maria como o da Senhora de Fátima…
Não sei o que pensaria da ida do homem à lua, mas nessa altura já muito velha, não assimilou a magnitude desse grandioso feito. Com certeza teria achado impossível e uma noticia inventada…mais uma.
Sempre a conheci viúva. Uma vida difícil para criar os filhos, cada um com uma história mais complicada que o outro , mas trabalhou sempre sem pensar nela, sem reclamar.
Excepção feita quando trabalhou no Brasil e por lá lhe quiseram ficar com a sua filha( minha avó). Aí sem dizer nada , pegou na filha, que era dela e não para dar ou vender por dinheiro algum, e voltou para o seu país, que é o meu, no primeiro barco a vapor em que conseguiu passagem. Abençoada a hora que o fez, caso contrário não estaria eu agora aqui.
Para ela ,todos os dias eram dias de trabalho. Recordo-me perfeitamente de a ver, já mais no final da velhice, simplesmente a mudar as coisas de lugar em cima da mesa e a deixá-las praticamente como estavam. Tinha que estar sempre ocupada .
As suas mãos velhas e enrugadas, com os dedos repletos de artroses, eram apesar dos trabalhos feitos, macias, como tudo nela.
Os gestos, a voz, por mais que fizesse ou dissesse nunca se alteravam.
Para ela estava sempre tudo bem.
Eu podia entrar em casa e dar a volta a tudo, que ela não reclamava nunca. “Então nina , tudo bem lá em casa”
Estava muitas vezes ao tanque á beira do poço. Lavar roupa, era o que mais gostava de fazer. Esta minha avó, que era minha bisavó, era lavadeira. Foi este trabalho que a levou ao Brasil, ainda com os filhos pequenos para arranjar vida , o que não conseguiu, mas isso é outra história.
Que saudades tenho desta avó, a quem sempre chamei “avó velha” por ser mais velha que as outras avós, que além de lavadeira foi cozinheira, arrumadeira, costureira, companheira, e muito paciente para todos nós, os filhos, netos, bisnetos, genros, toda a família… que vi sempre vestida de preto, com o cabelo branco penteado num totó, com as mãos e a voz muito macias. Vi a avó velha envelhecer, sempre a trabalhar e a ficar cada vez mais pequenina, mas nunca a vi zangar…
Que saudades tenho de ser neta, de entrar de rompante na cozinha dar mil beijos na avó, comer da sopa de feijão que ela fazia e ficar de barriga cheia todo o dia.
Engraçado, não queria voltar a ser filha, mas sim neta, e adormecer no regaço da minha avó velha, com a cabeça encostado no seu peito fofo e macio… e ficar ali deitada no seu colo e ao acordar fazer todas as coisas que deixei incompletas…..mil beijos avó velha.
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