quinta-feira, 1 de abril de 2010

Perto da liberdade

Durante a sua infância e adolescência, Isabel sem saber, tinha vivido na sua condição de mulher, num regime de total ausência de direitos. Em casa, como na  maioria dos lares portugueses, o pai dominava como figura de chefia, com totais poderes paternais e maritais, e todos lhe deviam obediência. Era  este o espírito imposto ás famílias, pelo regime totalitarista.

A mulher não tinha quaisquer direitos, tendo o marido tantos poderes sobre ela, que podia abrir a sua correspondência, proibi-la de trabalhar fora de casa, de tomar contraceptivos, de viajar para o estrangeiro, exercer qualquer espécie de comercio ou outra actividade liberal. Tudo isto e muito mais, só era possível com o acordo do marido. Para tudo, sendo casada, o marido tinha que dar autorização, e quanto á sua vida social e politica, ficava limitada às regras impostas pelo governo politico. Aliás politicamente, à mulher nada era  permitido.

Uma mulher mãe solteira, era marginalizada pela sociedade e o filho considerado ilegítimo(chamado filho de pai incógnito), sem direito a nome de pai.

Todas as mulheres eram consideradas um ser humano de nível inferior ao homem. Em casa de Isabel também era esse o regime que vigorava. O pai trabalhava fora e dava ordens, a mãe e os filhos obedeciam, sendo que o filho homem era educado para seguir o mesmo rumo do pai “que de pequenino é que se torce o pepino”. O chefe da casa. Só nas familias devidamente instruidas e politicamente informadas, é que estes conceitos poderiam ser diferentes.

Na sociedade a mulher tinha um papel meramente subalterno, sem direitos absolutamente nenhuns. Sujeitava-se ao facto da Constituição não garantir quaisquer direitos aos cidadãos, e muito menos a ela, que na altura tinha como obrigação parir, criar os filhos e cuidar da casa.

O direito ao trabalho fora de casa, continuação dos estudos livremente depois da quarta classe, (que era limite do ensino obrigatório), um determinado numero de carreiras, como a magistratura ou a politica, e uma série enorme de outros direitos estavam também condicionados á vontade do pai, influência e poder familiar. Todas estas regras eram demasiado complexas e exigentes para serem do conhecimento e compreensão de Isabel, criada na aldeia sem nunca ter sequer viajado até á capital, numa casa onde não se recorda, ter  visto revistas ou jornais.

Para Isabel, a mulher no mundo com mais liberdade era a avó Olinda, logo seguida da avó Teresa, pois ambas fizeram sempre o que muito bem lhes apeteceu, sem terem os maridos a intervir, e sem perceberem que politicamente eram consideradas muito menos que eles. Se elas soubessem, talvez tivessem lutado por isso, mas como não, limitaram-se a viver a sua liberdade da forma que entenderam. Isabel um dia sentir-se-ia feliz, se na sua profissão conseguisse agir livremente como as avós,  pois de uma coisa estava certa, queria muito ser mãe, mas também queria ter uma profissão, e não ficar em casa á espera do marido, como acontecia com a mãe. Queria ser independente.

Mesmo sem se envolver, Isabel ia sabendo que no país onde vivia, tudo era censurado. Teatro, livros, cinema, televisão, imprensa, discos, todas as artes estavam condicionadas pela censura. Tudo era censurado pelo estado, incluindo a revista crónica feminina, que a mãe comprava todas as semanas.

Não havia liberdade, nem democracia. Não existiam eleições livres, e o país vivia politicamente condicionado. Os oposicionistas, eram presos em cadeias e centros especiais, alegando a policia política (PIDE), os motivos políticos mais improváveis, para essas prisões, pois não tinham morto ou roubado nada, simplesmente lutavam com as palavras ditas ou escritas, o que se passava no seu país. Para muitos deles a solução era a vida na clandestinidade ou o refugio no exílio.

Enquanto os outros países progrediam e avançavam em democracia, o país de Isabel vivia uma ditadura há mais de quarenta anos, surgida gradualmente após a segunda Grande guerra mundial. Portugal não era nada bem visto a nível internacional, mantendo-se atrasado e fechado a novas ideias.

Isabel na universidade, ouvia falar destas coisas em segredo e nunca repetia nada em lugar nenhum. Estava mais que alertada em casa que se vivia muito bem assim, e que o governo Salazarista era o melhor para o povo. Além disso sabia que pessoas iam presas por dizer mal, (era o que se dizia), do regime politico vigente. Ás mais variadas horas do dia ou noite, as suas casas eram invadidas e a policia levava-as sem explicação alguma.

Nada de comentários fosse sobre o que fosse, na rua, ou até em casa, pois as paredes tinham ouvidos. No entanto Isabel, nunca se tinha perguntado porque é que a mãe não tinha os mesmos direitos do pai, não podia fazer nada sem lhe pedir, não podia trabalhar fora de casa por vontade expressa do pai.

Porque seria que as pessoas não se podiam reunir a discutir politica trocando opiniões, porque fugiam pelas fronteiras montanhosas em segredo para o estrangeiro ilegalmente, porque muitas famílias para sobreviver, iam trabalhar para o estrangeiro, porque tinham que ir para a guerra do Ultramar todos os jovens muitos deles sem perceber porquê, e os que fugiam a essa guerra não podiam voltar ao seu país, porque levou o colonialismo á guerra colonial, e fazia o país gastar tanto dinheiro. Sempre ouvira dizer que as colónias portuguesas eram o orgulho nacional, eram um prolongamento da nação que era preciso defender. Mas a luta para manter essas terras, estava a destruir os jovens e as famílias portuguesas. Isabel tinha muitas duvidas e não tinha quem a esclarecesse.

Desde que frequentara o liceu misto Isabel pensava, que como em casa, onde o pai ainda discutia muito, mas já não usava tanta violência física, tudo estava gradualmente a melhorar, pois apesar dos recreios não serem mistos, as salas de aulas eram mistas, e na universidade também andavam á vontade rapazes e raparigas, ao contrário do que tinha acontecido na escola primária.

Isabel não sabia bem, porque andava sempre tanta policia na zona da universidade, e porque apareciam tantos panfletos com informações politicas em sítios como nas casa de banho. Muitos estudantes viviam revoltados , mas será que teriam completa razão?

Estas duvidas, eram no entanto muito pouco, muito menos que uma gota de água. Isabel nem imaginava que entretanto muitas pessoas davam a sua existência, pela luta dos direitos humanos, pelo direito á liberdade, á democracia, á livre expressão de pensamento, aos direitos entre homens e mulheres, aos direitos das crianças, ao acesso ao ensino, o direito á saúde…, á paz e ao amor livres (estamos na era dos hippies) , e que por todo o mundo aconteciam manifestações de estudantes, também exilados, trabalhadores e opositores á continuação da guerra colonial. Ela também não sabia que a partir de uma certa visita do presidente da republica a vários estabelecimentos de ensino da cidade, os estudantes universitários contestatários, fizeram ouvir a sua voz contra a ditadura, enquanto discursava, já fartos de se envolverem em manifestações, revoltados com o regime totalitarista repressivo, e fartos de sofrerem sobre eles a repressão da polícia politica.

Ultimamente com a guerra colonial, que lhes roubava a juventude para os levar para uma guerra, que já não se sustentava e onde não viam qualquer sentido, os estudantes estavam a atingir o limite de revolta. Viviam-se os últimos momentos de uma politica absurda a que ultimamente com a retirada de Salazar por” motivos de saúde”,e subida ao poder de Marcelo Caetano, se denominava primavera marcelista.

Esta politica foi apenas um sonho da democratização do poder. Mudaram os nomes das instituições mas tudo ficou na mesma.

Isabel sentia á sua volta que algo estava em mudança. Com medo e meio atordoada com tudo o que via e ouvia, prosseguia os estudos e ingenuamente pensava que os jovens estudantes revoltados deviam era estudar, para ajudarem futuramente a construir um Portugal melhor.

Mas a 14 de Janeiro de 1974 o General Spínola toma posse da vice-presidência do cargo de General do Estado-maior das Forças Armadas, que depressa é demitido aquando do lançamento do livro”Portugal e o Futuro”. Marcelo Caetano demite-o pois não concorda com as suas opiniões acerca da politica colonial. Demitido, Spínola rapidamente se torna herói nacional.

Isabel estava prestes a ver a sua vida mudar como estudante e como mulher, e não iria estar só!

Todo o seu futuro iria depender destas mudanças.

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