as nossas mãos perdem-se no silêncio
no repetir do autocarro a parar cada dia
numa outra qualquer paragem
que apenas ficou a lembrança do que não foi
que mania de não lembrar o bom
em mim tudo estala de tristeza
tudo o que eu mais gostava
agora que será de cada dia vazio?
dos dias em que o sol não aquece as nossas almas,
nas noites em que os nossos olhos fechados
Corpos iluminados de tudo
de tanta coisa que nem sei dizer
mas sinto me leva a morrer
Eu nunca soube nada
Sentava-me no degrau da porta
E ali ficava
Esperando
Não sei se pensava
Mas penso que sim
Que não queria uma vida ruim
E cada dia era assim
daquele degrau saía
Pra fazer algum recado
Só isso
No resto
Era ali que passava o dia
Mesmo depois da escola
Ali fazia os deveres
Esperava a noite chegar
E como sempre, ao primeiro sinal
Ia pra dentro
tinha de me lavar
Para o jantar
Mãos lavadas, unhas limpas
Bibe sem nódoas, nem roto
E lá me sentava á mesa
Encolhida como um cão
Pedindo a Deus que por tudo
Naquele dia não
Naquele dia não houvesse confusão
Quanta aflição passada
Angústias vividas
Por mim sofridas
Eu só queria amor e pão
Um pouco de consolo
Pedir colo seria muito
mas uma mão, não....
Já nada me parece como antes
Perdi o cheiro das rosas do silvado
As amoras da esquina, já não nascem
Secou o poço,
No balde, cresceram ervas
Na regadeira
onde passava água fresca,
Mora agora
Enredado e perdida a história da vida.
Que fazer quando já nada se pode
Quando tudo se foi
E apenas restou a rotina
O mesmo cada dia à mesma hora?
É preciso andar em frente
Girar para trás é desatino
E fazer,
fazer tudo sem pensar
Fazer tudo o que há para fazer
Quem sabe o poço um dia,
Sem ninguém o esperar,
Volte a encher....
E a água na regadeira volte a passar...
Já não sei dizer, amor
Porque te amo e te quero junto a mim
Passou o tempo
E com ele foram- se as palavras
Que tudo diziam sem vergonha
Sinto que se afundaram em mim
todas as letras, palavras benditas
Que tenho presas algures
Quem sabe dentro do meu peito
Seguras na garganta
Que não saem
Que me dizem estar velha
Sim, velha
Que importa então
Dizer agora o que possa ser dito
O que possa sentir
um coração que chora
Se tu, se ninguém
vai dar importância ao que sinto
Foi tanto o que vivi
Mais ainda o não vivido
Que estou presa entre teias fortes
Enredara em confusos laços
Que me atam
Me prendem e amarram
Não me deixam viver
O tudo que me falta
Quanta magoa, ter passado por tanto
Ter amado, sofrido, gritado, cantado esse amor
E não ter desenrolado esse novelo...
Antes eu não sabia
Que frenesim era aquele
Que fazia unir dois corpos
Que colados
Se esfregavam, contorciam
Gemiam e gritavam
Não sei se de prazer, se de loucura
Mas assim ficavam
sem parar, num galopar que assustava
Que parecia penetrar o corpo e a alma
E tudo faziam
Dizendo um ao outro palavras
Que mal se ouviam
Que não se entendiam
Que só eles percebiam
Não,
antes eu não sabia que isso era amar
Fazer amor com o ser amado
E por ele morrer, se necessário...
Coisa estranha
Fazer amor com dor
Com gemidos, grunhidos
Com abraços colados
Corpos suados, languidos,
Terminando num grito de êxtase
Um grito ou mais,
dos que rasgam a carne
Que doem, mas dão prazer
Sim,
antes eu não sabia o que era isto
este fogo que chamam amor
Hoje só sei o que me contaram...
Como se fosse possível
De novo nascer
Mais uma e outra vez ser
Leva-me a viajar
Beija-me a boca
Seca-me as lágrimas
Conta-me segredos de viagens feitas
Dá-me de beber
Seca os meus lábios loucos
Do prazer de cada amanhecer
O meu corpo sedento de desejo
Quer o teu
Amor não tem tempo,
Nem idade
E em nós foge-nos tudo
O nosso renascer tem que ser constante
Eterno e imenso como o firmamento
Há muito que o relógio parou
Deixamos que essa máquina parasse
E caminhámos sem nada olhar
Encarando o futuro que é passado, que é hoje
Sim, que importa se vivemos mais ou
menos
Se existimos, e, ao lado um do outro, somos
Sempre seremos
Como Deus infinito quer que sejamos
Amantes no olhar
Suspensos num luar só nosso
Que ninguém mais vê
Que é infinito, perpétuo destino engrandecido
Num terno véu que nos envolve e aquece?
Imaculada sorte a nossa
Sermos amantes eternos
Amarmo-nos como ninguém jamais amou
Tanto para
dizer
E nada sai deste meu corpo inútil
Desta minha boca fechada
Gaveta parada aberta,
onde guardo tudo
Onde se amontoam desejos
Sonhos não vividos
impossíveis de ser
Incapazes de acontecer
Que importa
haver a primavera
Se as andorinhas sumiram
Se as flores não abriram
Se a água das fontes secou
Se o ventou
até as folhas do limoeiro levou
Vivo um
Inverno
Imenso
Que me consome
Um tormento que me destrói
Cada momento
Mas vivo...
Contigo!
Faltam- me palavras
A noite engoliu o meu poder
A força que continha a minha dor
Mar sem sal
Céu sem lua, sem luar
Assim estou eu
E tu e eu
parados
Perdidos num vazio
Que nos engoliu vivos
Juntos, lado a lado
No silêncio das palavras
Vamos caminhando
Fazer o quê?
Na praia já não poisam as gaivotas
O mar avançou terra adiante
Destruiu muros, casas,
Todas as barreiras
Até o jardim dos malmequeres brancos
Engoliu homens vivos
Como se fossem peixes fora de água
Destruiu o nosso amor
Que viveu bem perto dele
Que cresceu junto a ele
Que viajou por ele adentro
E agora, nele se afundou
Nele morreu, se perdeu
Para todo o sempre
Nem o sei...
Que me importa tudo o resto
Se os sonhos já não mais cor de rosa
Se agora são apenas nuvens violeta
E por dentro choram, doem
Como espinhos de uma roseira brava
Que não existe, mas sinto perto
Pra que quero eu palavras
Se tudo está feito e dito
Se a roseira não dá rosas
Se o mar continua inquieto
Se as tuas mãos nas minhas me dizem
"É a vida a andar para a frente"
Mas eu não gosto da noite negra
E não esqueço os malmequeres
Que me encantavam
Não, isso não ...
Já nada é,
já nada parece ser.
As nossas mãos perdem-se no silêncio
dos dias parados,
no repetir do autocarro a parar
cada dia,
numa outra qualquer paragem
Passou tudo tão depressa
sabes, lembras-te?
Não vês que tudo se foi,
que apenas ficou a lembrança do que não foi?
Que mania,
a de nunca lembrarmos o bom
e nunca esquecermos o ruim.
Sorte malvada.
Dói-me a cabeça,
em mim tudo estala de tristeza
Tudo que eu gostava
muitas vezes cansado
tu me tiraste,
te negavas, nos roubaste
e agora?
Agora que será de cada dia vazio?
dos dias em que o sol não aquece as nossas almas
Das noites em que os nossos olhos fechados
só vêem clarões de luz,
fogo misturado em água
coisa rara,
como a nossa vida....
Corpos iluminados de tudo e nada
Barcos a afundar de dor,
de bruto prazer,
de tanta coisa que nem sei dizer
mas sinto me leva a morrer
de dor,
de ausência de amor
de desprazer
De pouco ter tido
De nada ter...
PREFÁCIO do MEU livro "NINGUÉM
MERECE"
Escrever sobre violência é difícil. Acho
que pode ser até violento. Mas escrever sobre a violência que acontece dentro
das casas, entre as famílias. Entre aqueles que deviam supostamente amar-se, é
como desferir um golpe profundo. Daqueles que rasgam. São palavras que não nos
deixam ficar imóveis. Serenos. Apanham-nos pelos braços e não nos deixam fugir.
Agarram-nos pelos cabelos e não gritamos. Escrever sobre esta violência é
também um acto de amor. De coragem. Pode ser até a âncora daquela ou
daquele que se reconhecem em cada entrelinha; que encontram nos advérbios de
modo e nos parágrafos a sua salvação.
A Violência Doméstica é uma dessas verdades de que ouvimos falar vezes e vezes
sem conta, na televisão, no jornal, na mesa do café.
É tantas vezes o som
abafado que se confunde com o arrastar dos móveis do andar de cima ou aquele
olhar que nos deitam em forma de SOCORRO mas preferimos não entender.
Encolhemos os ombros e passamos a outro e não ao mesmo.
A Violência Doméstica
tem tantas caras, idades, credos. Usa roupa de marca ou sem ela, mas deixa
sempre A marca. Falamos do poder; falamos da dor. Falamos… E falamos tanto. Às
vezes demais.
Noutras vezes, a marca perdura. Para sempre.
Transformada em morte. Num
silêncio absurdo e absoluto.
Num luto que ninguém faz porque não se sabe fazer.
As casas, as famílias, as pessoas, pintam-se de um negro que não se explica.
Que nunca se entende. Enterra-se a história.
Enterram-se vivos tantos futuros.
A Inês Maomé escreve de verdade. Sobre a verdade. Não se esconde atrás das
metáforas ou dos estilos. É realista à sua maneira; à maneira que tem que ser.
Expressionista nos tons do medo, da vergonha e da esperança. Surrealista,
porque queria, como todos queremos, que esta violência não fizesse parte das
nossas vidas.
Ninguém Merece é o título perfeito. Podia ser o prefácio perfeito. Mas é também
o epílogo perfeito. Perfeito, porque diz tudo. Porque nenhum de nós merece
sofrer.
Daniel Cotrim
Assessor Técnico da Direção da APAV