segunda-feira, 29 de março de 2010

A universidade

Havia algum tempo que a avó Teresa estava a viver numa casa alugada, na mesma rua de Isabel.
 Eram sem conta, o numero de vezes que Isabel continuava a visitar a avó mexendo e remexendo em tudo, sem receio de ser chamada de atrevida. Apesar de mais crescida Isabel continuava com o hábito de visitar a avó, mexendo e conversando á vontade com a bisavó Júlia. No quarto do Nélito continuava a abundância de materiais diversos, além de livros, de não muito rico conteúdo, Isabel encontrava coisas como um curso completo de inglês, ou uma enciclopédia sobre qualquer assunto sem grande interesse. O Nélito queria, e a avó e o avô Orlando compravam, pois não queriam que nada faltasse a este filho mais novo. Aos poucos enquanto tirava um curso técnico, ia enchendo o quarto de tralha, que não deve ter usado para nada.

A avó Teresa era um doce, e sempre que era vontade do Nélito, preparava lanches divinos onde não faltava o essencial para  abrir o apetite e servir os amigos do filho, muitas vezes convidados em cima da hora. Na mesa não faltavam nunca os bolos ,queijo, enchidos, sumos e um bom vinho. Muitas vezes alguns salgados e porque não, um bom naco de carne ou frango assados no forno, preparados pelas gloriosas mãos da avó Júlia, que apesar da idade ainda cozinhava alguns pratos.

Sentados á mesa, os amigos do Nélito, a maioria do grupo amador de teatro da aldeia( que o Nélito era um actor),deliciavam os olhos e depois a barriga com a abundância de comida gostosa que lhes era oferecida. Também Pedro, que como o Nélito era um elemento muito activo e colaborador do grupo, por vezes estava neste grupo.

Isabel , quando o pai dava autorização, costumava ir com a avó Teresa ver as peças de teatro, apresentadas pelo grupo em que o tio participava, e muitas vezes ao ver a actuação de Pedro, ficava impressionada. Gostava das suas interpretações e da forma se movimentava no palco. Atraía-a a forma como as  suas mãos falavam…

Não sabia muito bem quem era. Parecia-lhe novo demais. De vez em quando via-o a caminho do liceu, com colegas. Não o conhecia da aldeia e tirando o dia em que dançou com ele no baile de finalistas, nunca mais lhe falara. De vez em quando via-o na missa, mas o interesse de Isabel  estava virado para aquele, que nunca lhe dirigia palavra e se comportava com ela, como se ela não existisse. Coisas da juventude…

Isabel tinha feito exame de acesso á universidade a duas faculdades e por opção do pai, dera entrada naquela que ele achara mais de acordo com a sua condição de mulher. Ia estudar na área de saúde.

Em cada ano Isabel sentia-se mais segura de si em relação á forma como se tinha que preparar para os exames, mas em relação á sua conduta social, Isabel continuava cada vez mais receosa, com medos de tudo e todos. Grupos de pessoas agitadas, discussões, e outras situações fora do habitual, que pudessem parecer estranhas, assustavam-na.

Enquanto estudante, foi crescendo nela uma ansiedade e medos, muitas vezes difíceis de controlar, que lhe transformavam os dias num inferno. Por vezes pensava que estava doente, quem sabe do coração, pois as crises de taquicardia que fazia, chegavam a não a deixar respirar. De casa para a faculdade e desta para casa, tudo o que saísse desta rotina custava-lhe a suportar. Estava a ficar assombrada com o que poderia ser o seu futuro.

Suportava mal, emoções fortes ou fora do comum e para fugir a elas vivia mal informada. Não lia nem queria saber de noticias, as permitidas na altura pois com a censura, pouco se sabia de anormal nos jornais e revistas permitidos. Dos movimentos estudantis e das revoltas contra a politica e governos da altura, ainda menos sabia. Estudantes eram presos, a policia fazia rusgas diversas, falava-se em surdina muita coisa que ela para se proteger na sua fragilidade emocional, fazia de conta não existirem. Perdeu da história momentos que poderiam ter marcado positivamente, no sentido de conhecimento histórico, muito mais a sua vida para sempre. Por medo e estupidez manteve-se a leste de todos os problemas que na altura afligiam o país, e que tinham como ponto fulcral a guerra nas colónias do Ultramar. Cumpria as suas tarefas como estudante, respeitando as normas impostas e o resto logo se viria.

Em casa continuava a tentar evitar a violência doméstica, (aconselhando a mãe a manter-se em silêncio quando o pai discutia, por exemplo) então mais verbal, desde que ela e o João estavam mais crescidos.

Nas viagens de comboio para as aulas, que por ordem expressa do pai, tinham que ser feitas em primeira classe, pois António entendia que aí Isabel viajaria mais segura, não poucas vezes ela passou momentos de desespero. Os rapazes passeavam-se, enquanto o comboio não arrancava, de trás para diante e vice versa, mandando bocas ás garotas que estavam já nos seus lugares, muitas vezes desagradáveis. Isabel toda estremecia quando algum mais atrevido passava por dentro do comboio e mais de perto entendia com ela. Ainda guardava na memória as cenas de exibicionismo de que fora vitima na infância.

Por vezes ainda que numa postura pacata, via Pedro igualmente fazendo este percurso…

Na faculdade ia conhecendo vários amigos, e um deles, muito insistente tentou por várias vezes manter um namoro com Isabel. Passearam algumas vezes e tomaram juntos alguns lanches. Foi nesta altura que infringindo as normas de casa, dizendo que tinha que preparar uns trabalhos com uma colega na cidade, Isabel conseguiu ir a uma festa á noite na cidade. Essa noite esperava ela, seria a mais divertida de sempre.

Presente nessa festa, estava o jovem que Isabel teimava em manter prisioneiro na sua mente, mas mais uma vez ele dançou toda a noite sem nunca se ter abeirado dela. Dizia na altura, a irmã dele a Isabel, que ele se mantinha afastado porque mais uma vez tinha chumbado no exame de acesso á faculdade de Direito. Isabel não entendia esse silêncio e cada vez mais, se distanciava daquele jovem, por quem tantas vezes suspirou, mas que parecia não ter personalidade.

Nesse baile dançou muito, e com muita gente jovem como ela, mas dançou muito mais com aquele jovem louro, jogador de futebol que muito a queria para namorar. Ela desconfiava e achava estranho aquela simpatia. Achava-se normal, quase feia, e não entendia porquê ela, se havia tanta rapariga a pretende-lo. Mas influenciada pelas amigas foi-se deixando andar e sempre que ele a ia buscar á porta da faculdade, as colegas no dia seguinte queriam saber novidades, ainda que nada tivesse para contar.

Passeavam de mãos dadas, e o João que por vezes os via passar, dizia á irmã o pior que podia daquele rapaz. Nada tinha acontecido nunca, que pudesse dar ideia a Isabel, que ele seria mau rapaz , mas o João até parecia ter ciumes da irmã. Jogar futebol não era crime…., mas para contrariar e aborrecer o irmão, Isabel deixava-se andar….

Um dia sem ela contar ele beijou-a. Um beijo longo e muito diferente. Ela estava sufocada, atordoada, de uma forma que ela desconhecia e nem estava a contar, ela não gostou nada. Sentiu-lhe o cheiro e o toque da boca e não gostou. Isabel sentiu-se enojada. Pediu-lhe por tudo para não voltar a fazer aquilo. Aquele beijo que a invadiu completamente sem ela contar, incomodou-a de tal forma que ela teve a certeza que aquela não era a pessoa que ela desejava. Se fosse não deveria sentir tudo aquilo.

Continuaram a ver-se, mas cada vez menos . Isabel inventava desculpas e nunca estava disponível, tinha sempre que estudar. Aquilo nunca fora um namoro, mas Isabel sabia que tinha perdido um amigo , pois como tal, era muito bom passarem tardes a conversar, mas só isso. Gradualmente um novo amor surgiu na vida dele, alguém que ele podia beijar, abraçar as vezes que lhe apetecesse, sem ser empurrado e maltratado.

Isabel não estava preparada para viver aqueles namoros, aquelas emoções, que podiam ou não ter futuro. Precisava de sentir no seu coração uma calma e tranquilidades tão grandes, que quando estivesse perto do namorado sentisse vontade do dia nunca mais chegar ao fim.

Sem festas, nem bailes, ou outros convívios, Isabel vivia par o seu estudo e nada mais. De vez em quando diziam-lhe que era bonita, como quando de visita a casa da namorada do João, que era do Norte, para fazer com ela e família a passagem de ano, pois o irmão por motivos de estudo não podia estar presente, muitos amigos da família diziam “a irmã do João, teu namorado, é bonita”. Isabel ria-se a achava que era gentileza.

De vez em quando, uma jovem da aldeia, recentemente entrada na universidade, falava com Isabel acerca de Pedro. Queria muito saber coisas dele. Dizia-se apaixonada. Um dia contou-lhe que tinha uma foto de Isabel e dele, a dançarem no baile de finalistas dele. Isabel quis muito ver essa foto e não descansou enquanto a foto não passou para as suas mãos. Quanto mais ela lhe dizia que gostava dele, mais Isabel se interessava em saber coisas sobre o Pedro. Em casa olhava a fotografia, e interrogava-se.

“Seria possível”?

“Mal se falavam”,era o que pensava Isabel não esquecendo as suas mãos que no teatro quando representava, sempre a perturbavam.

Nunca mais daria a foto á amiga e logo que houvesse uma peça nova de teatro, tinha que pedir ao pai para ir com a avó Teresa…

Lembra-se de uma vez num baile que foi com a mãe, feito para homenagear um jovem soldado vindo do Ultramar, ver o Pedro a dançar muito agarradinho a uma moça, e se na altura isso não a tinha perturbado, agora ao pensar nisso, não gostava de se lembrar.

Politicamente e socialmente tudo estava a mudar na aldeia e no país. Isabel também….

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